Namarie

Hoje é um dia tão bom como qualquer outro. Não há significados subliminares para a data. Talvez por ser final da semana. Sei lá. Se calhar, simplesmente, porque me apeteceu!

Vou cobrir os móveis com lençóis, conferindo-lhes um aspecto fantasmagórico (que em nada desvirtua o perfil desta sala) e depois vou sair de fininho, ou fechar a porta devagarinho.

Uma espécie de “vou ali comprar cigarros e volto já”, com todo o indeterminismo que esta afirmação possa ter.

Tornarei a sala invisível. Sendo que esta é uma característica que, cada vez mais, me agrada: a Invisibilidade, em diversas interpretações que esta possa ter.

Sempre tive uma relação avessa com este bloco de apontamentos, como saberão aqueles que melhor me conhecem. E sempre lhe chamei bloco de apontamentos porque nunca pretendi que fosse outra coisa e porque no dia em que o encarasse como outra coisa…, bom, então nem teria existido!

Aqui decidi partilhar anotações que, doravante, ficarão num qualquer caderno, num qualquer pensamento, numa qualquer outra sala do fundo.

Foi um exercício interessante, mas decididamente não é algo que me prenda, nem assume uma importância fulcral na minha vida, uma sede que não sinto. E se alguma vez a senti, para já, estou satisfeito!

Recorrendo às terminologias utilizadas nas últimas publicações, digamos que aqui já não se servem bebidas. Mas há bares suficientes nas redondezas com cocktails para todos os gostos, onde podem ir tomar um copo e dar dois dedos de conversa.

E como sempre ouvi dizer que devemos sair airosamente, antes do “espírito de fim de festa” e poupar-nos à decadência, opto por seguir o conselho: fechar para obras; ir apanhar ar; ir lá fora fumar um cigarro ou dar uma volta ao Bilhar Grande (que deve ser um sítio interessantíssimo, atendendo à quantidade de pessoas que aconselham outras a deslocarem-se até lá).

Fernando Pessoa escreveu: “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

Para mim, tem tido valor e intensidade suficiente. É, sem dúvida, uma experiência inesquecível onde participaram pessoas incomparáveis, igualmente inesquecíveis.

Por ora, a Sala está fechada!

Namarie


I'll kiss the sleep from your eyes
I'll kiss you when the sun goes down
I'll kiss your until sunrise
I'll kiss the skin from your lips
And I'll kiss you on your fingertips
And I'll kiss you on the back of your neck
And I'll kiss you behind your ears
And I'll kiss away your tears and fears
And I'll kiss away those hurting years
And I'll kiss away those cruel dark hours
And I'll kiss the petals on your flower
I'll kiss you, I'll kiss you
I'll kiss you until heaven sends you

I'll kiss you between your toes
I'll kiss you on the bottom of your feet
I'll run my tongue across your back
I'll kiss you behind your naked knees
I'll kiss your breast, I'll drink your milk
I'll run my tongue between your lips
I'll kiss you, kiss you, kiss you on your sex
And I'll take you, take you, take you in my mouth
And I'll kiss you, kiss you until heaven sends you

Life's a Stage

Duas músicas. Um palco. Representações no palco da vida.





“Life's but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing."
(Shakespeare, Macbeth)

Tattooed Man

Dedicada ao Sr. Anónimo, na mesa lá do fundo.

Obrigado pela sugestão.

A próxima rodada é por conta da casa.



There's a man lying down in a grave somewhere
With the same tattoos as me
And I love him, I love him, I love him, I love him, I love him

There's a man lying down in a bed somewhere
With a different set of sex aspects
And I hate him, I hate him, I hate him, I hate him, my eyes

This is me here now
Pining like a dog, whining like a dog in a thick harbour fog
Waiting for a ship that will make him sick
And when the ship comes, big trouble
His trouble will begin

And the church bells chime the colour of wine
And the angels devil fight to snatch back the lost time

And there's a man lying down with a blade somewhere
With the same taboos as me
And I love him, I love him, I love him, I love him, I love him

There's a man lying down in a bed somewhere
With a different set of sex aspects
And I hate him, I hate him, I hate him, I hate him, my eyes

This is the dark age of love
This is the dark age of love
This is the dark age of love
This is the dark ???

And I love him, I love him, I love him, I love him, I love him

There's a man laying down
There's a man laying down
There's a man laying down
There's a man laying down somewhere

Lounge

Muito bem.

Para que não chamem de tasca a este ambiente selecto, fica aqui o conceito Lounge.

E este bar lounge, bem cotado nas clubbing tours e night news, prima pelo aspecto clean e retro, de acordo com os mais elevados standards das tendências fashion.

Espaço de vernissage.

Pode tomar um Claridge. Saborear um Strawberry Art ou um Kirk Royale. Aveturar-se como agente do MI5 com um Dry Martini.

Tomar um Mojito e perceber "Por Quem os Sinos Dobram" ou optar por uma Caipirinha. Que é bem ser caliente ou ter salero.

Aventure-se num Singapura Sling ou num Chinese, se preferir algo mais oriental.

Ou rumar aos States com um New York Sour

É só escolher.

E para acompanhar...

Zero

Segurando um punhado de memórias nas mãos vazias,

Olhas o relógio.

Contagem decrescente para a Hora Zero.

9

Curiosas, as contagens decrescentes: Compassadas. Ritmadas.

Numeração inversa, rumo a uma zona fronteiriça do Tempo,

Assinala a aproximação de um fim ou antecede um início. Ou, simplesmente, funde num único suspiro o limiar entre ambos os momentos.

Momentos que não são se excluem ou anulam necessariamente, formando um todo contínuo. Uma roda em constante movimento.

8

A Vida, também ela, uma contagem decrescente, se assim a quisermos entender, repleta de outras contagens: crescentes e decrescentes…

Espirais que convergem e divergem a partir de um mesmo centro.

Centro: ponto na imensidão. Ponto de partida. Ponto de chegada. Ponto de referência.

Limiar entre o Ontem e o Amanhã, entre o Passado e o Futuro, suspensos num breve segundo de Presente.

7

Olhas em redor:

Uma labareda que se extingue entre brasas que escorregam lentamente num tempo contado,

Renasce. Bastando um sopro, para que se erga uma língua de fogo que te aquece com as suas palavras. Uma lufada suficiente para que possa emergir na sua pira, emanando ondas de calor.

Uma ampulheta que só recomeça a contagem quando voltada, girando sobre o seu eixo.

6

Papéis dispersos, como folhas caídas das árvores, arrancadas pelo vento de Outono.

Palavras sublinhadas; palavras anotadas e outras tantas para um dia, que nunca chegou, porque adiado,

Ficaram perdidas num memorando esquecido.

5

Novos desafios. Outras contagens.

Afiguram-se apetecíveis e irresistíveis.

E um esgar de escárnio, trocista, de quem goza com a Sorte, traça-te o rosto.

Situas os zeros à esquerda e avanças.

4

Deténs-te no centro.

No que te resta de Presente.

O breve momento, que levas a inspirar e encher de ar os pulmões, encerra toda a essência do que foi e do que virá a ser.

(Ah! Instante fátuo!)

E nessa brevidade de tempo, há tempo suficiente para modificar tudo!

Num volte-face súbito, as reviravoltas do Destino trocam-te as voltas e fazem-te rodopiar no sentido dos ponteiros do relógio.

Contagem a zeros!

3

Precipita-se a Hora Zero,

Elo entre o que foi e o que há-de ser.

E podes pensar no que poderia ter sido e que não chegará a ser,

Entre o que não foi e que há-de ser,

O que não foi, nem será.

O que foi e não voltará a ser.

O que foi e será.

2

Seja lá o que tenha sido. Seja lá o que venha a ser,

Oscilando na modorrenta indiferença hipnótica do pêndulo.

Esboças um sorriso. Um esquisso que desenhas na face do futuro que desejas, na antecâmara do desejo e da incerteza.

1

Olhas o relógio:

Hora…

Zero!

Um

A Esfinge



Certa noite, quando o vento empurra a chuva e a torna oblíqua, quando esta bate no chão com tal intensidade que se volta a erguer criando uma neblina, um viajante caminhava entre a tempestade. Curvado sobre si, lutava contra a força do vento que lhe travava os passos, mal vislumbrando a estrada à sua frente que desaparecia entre a escuridão e o manto de água que a cobria.

Passado algum tempo chegou a uma encruzilhada. Estacou face a um vulto que se entrepunha entre si e o caminho a seguir. Uma figura alta que lhe dirigia um sorriso.

Ergueu o rosto e os seus olhos procuraram os do homem que o interpelava: deixá-lo-ia passar, se respondesse a uma pergunta.

O viajante dispôs-se ao desafio. O homem aproximou-se e segredou-lhe ao ouvido a pergunta.

Uma simples pergunta.

A princípio, pareceu-lhe demasiado fácil de responder. Preparava-se para o fazer quando percebeu que não conseguia. Deu consigo a confabular inúmeras explicações e a atribuir-lhe um carácter quase metafísico. Afinal, a questão revelava-se mais complexa do que inicialmente parecia e, como tal, não poderia ser respondido de forma leviana e precipitada.

O turbilhão que lhe atravessava a mente era maior do que aquele que continuava a abater-se sobre si.

Com um olhar triste, o homem ergueu o braço e apontou-lhe outra direcção.
Entre vento e chuva, com a questão a ocupar-lhe os pensamentos, o viajante encaminhou-se para a estrada que lhe havia sido indicada.

Caminhou. Caminhou até a chuva parar, até o vento se tornar brisa e vir acariciar-lhe o rosto. Até a Primavera devolver a vida aos campos, florindo-os com o desabrochar da esperança, num ciclo de vida que reinicia.

Sob um céu azul, o viajante era acompanhado pelo voo das andorinhas, pelo seu chilreio. Enchia de ar os pulmões, inalando o aroma fresco das flores e caminhava. Caminhava.

De quando em quando, a pergunta que o homem lhe fizera inquietava-lhe os pensamentos. Pensava que por não a conseguir responder fosse, por si, resposta suficiente.

Mas agora sentia-se seguro de si. Sim. Conseguiria com toda a certeza responder ao dilema. Sentia em si a resposta. Sorria e caminhava.

Ao final da tarde, quando o céu adquire tons dourados e laranja, vislumbrou adiante um vulto que se transformava em mulher, à medida que se aproximava. Esta encontrava-se sentada sob uma árvore que tinha a particularidade de possuir nas suas ramagens um único fruto.

Ele esboçou um sorriso e saudou-a.

Ela retribuiu o cumprimento, olhando-o com candura. Depois disse-lhe: para que pudesse passar, teria de responder a uma questão.

Imediatamente, o viajante recordou o episódio anterior. Abeirou-se dela e escutou a questão murmurada ao ouvido.

Ergueu-se com um sorriso triunfante a bailar-lhe no rosto.

Era a mesma pergunta! E desta vez sabia como responder!

Preparava-se para o fazer quando a palavra, a única e simples palavra que bastava, lhe morreu nos lábios. Uma única palavra, para uma simples pergunta que, uma vez mais, não se revelava assim tão simples. Porque, por vezes, uma simples palavra torna-se mais difícil de proferir do que a mais longa e aprofundada reflexão. Porque para a proferir na sua simplicidade quantas vezes não lhe subjaz precisamente uma longa e aprofundada reflexão?

Baixando os olhos, a mulher indicou-lhe outro caminho na encruzilhada.

Baixando os olhos, ele dirigiu-se ao seu novo rumo, desolado e curvo, enfrentando a tenebrosa tempestade naquele final de tarde de Primavera.

Percorreu trilhos, contornou escolhos, escolheu caminhos sob o sol de Verão que lhe queimava a pele.

Mas um dia, regressou à estrada e ao fazê-lo, foi uma vez mais confrontado. Uma terceira figura, igualmente masculina surgia-lhe pela frente, interditando-lhe a passagem.

Uma terceira vez, um desafio. Uma terceira vez, uma pergunta. Uma terceira vez, A pergunta.

Rapidamente começou a dissertar e a invocar explicações cósmicas enquanto desencadeava um vasto leque de hipóteses e constatações, olhando o prisma segundo uma multiplicidade de pontos de vista. E no final de todas essas análises, a conclusão nula a atirá-lo para o início.

Uma terceira vez a incapacidade de responder. E o homem, lamentando, indicou-lhe novo caminho.

Novo caminho, tornando demanda pela resposta ao enigma que lhe absorvia os pensamentos. Uma peregrinação por lugares longínquos que não se projectavam na paisagem que o se entendia à sua frente, mas nos cantos mais recônditos de si.

Cansado, arrastava consigo o peso nos ombros, alheio ao céu que se escurecia a tempos, à brisa que se elevava num vento frio, outonal. Limitava-se apenas a caminhar, sem questionar onde os seus pés o conduziriam, como se fosse uma folha ao vento, semelhante àquelas que agora se desprendiam das árvores.

Perdido nos seus pensamentos, quase nem reparava que pela quarta vez o seu percurso era entravado por uma nova esfinge, com um novo dilema, formulado numa pergunta que temia igual.

Uma nova mulher, a expor a mesma condição exigida para que pudesse continuar o seu percurso.

Com um olhar sagaz que procurava obter a resposta ainda antes de ter formulado a pergunta, segredou-lhe ao ouvido. Atenta aguardou a resposta. Mas resposta não obteve.

O viajante, não disse nada. Impeliu-se a uma nova vereda, deambulando entre encruzilhadas, debatendo-se com o eco das palavras dentro de si.

Sabia que a esfinge lhe continuaria a aparecer sob diversas formas e a colocar-lhe enigmas, a desafiar-lhe a resposta.

Paint it Black



I see a red door and I want it painted black
No colors anymore I want them to turn black
I see the girls walk by dressed in their summer clothes
I have to turn my head until my darkness goes
I see a line of cars and they’re all painted black
With flowers and my love both never to come back
I see people turn their heads and quickly look away
Like a new born baby it just happens every day
I look inside myself and see my heart is black
I see my red door and it has been painted black
Maybe then Ill fade away and not have to face the facts
Its not easy facin’ up when your whole world is black

No more will my green sea go turn a deeper blue
I could not foresee this thing happening to you
If I look hard enough into the settin’ sun
My love will laugh with me before the mornin’ comes

I see a red door and I want it painted black
No colors anymore I want them to turn black
I see the girls walk by dressed in their summer clothes
I have to turn my head until my darkness goes
Hmm, hmm, hmm,...
I wanna see it painted, painted black
Black as night, black as coal
I wanna see the sun blotted out from the sky
I wanna see it painted, painted, painted, painted black
Yeah!


Na tua Teia

Sangue e Sémen



Quando o frio dos olhos dela, se incendiou no lume dos dele. Quando o azul gelo dos lábios dele, tocaram os lábios vermelhos fogo, dela. Quando a pele fria. Quando a pele morna.

Conduziram-se, um ao outro, entre abraços e beijos. - Quem tinha tomado essa decisão? Não importava! - Enlevados em espirais deixaram-se arrastar um em torno do outro, em movimentos concêntricos que partiam de um mesmo desejo.

Mãos peregrinas numa caminhada, uma mesma demanda num corpo oposto. Ela tocava-o, ele tocava-a. Ela procurava Amor. Ele procurava Vida. Ambos procuravam no outro a fonte para saciar a sede que possuíam.

Ela esperava encontrá-la na origem da vida. Ele, na própria existência, na força vital que lhe percorria o corpo.

Despidos e despojados.

Ela procurava a semente, ele procurava o vaso. Ela encontrou-a. Ele encontrou-o. Ambos unidos num êxtase.

Ela encontrava o Amor enquanto perdia a vida. Ele adquiria vida enquanto dispensava Amor.

Unidos no Amor, de ambos fluíra Vida: Sangue e Sémen.

Psis II



Tenho grande respeito por psicólogos.

Eu próprio, em tempos que já lá vão, pensei em seguir esta via académica/profissional…

Bom, acima de tudo académica. Porque no que respeita à parte profissional, à semelhança de tantas outras, já dependeria de uma multiplicidade de factores e imprevistos que por vezes nos afastam da sua plena aplicação.

Por isso impõe-se a distinção entre psicólogos e licenciados em Psicologia. Uma distinção que muitos não me perdoariam se eu aqui não a fizesse e eu não quero afrontar o brio profissional.

“Só vai par a Psicologia a malta que tem problemas pessoais para resolver”, ouvi dizer diversas vezes (e a concordar, atendendo a alguns casos que conheço). É claro que não é um pensamento muito reconfortante. Eu que pensava que só ía para Psicologia quem queria ajudar os outros…

Como de sábios e loucos todos temos a nossa quota-parte, talvez haja aqui algum fundo de verdade. Não sei. (Deixo essa reflexão para outros, mais habilitados a fazê-la do que eu).

Enfim, acabei por optar por outra via. Assim foi, porque assim calhou. (Não sou assim tão paranóico).

Pronto! Creio que neste momento tenha psicólogos e licenciados em Psicologia a esfregar as mãos e a começar a tirar uma série de ilações acerca de frustrações, recalcamentos e mais meia-dúzia de termos. Também não os vou contrariar. Interpretem como quiserem.

Para os psicólogos, tudo se afigura passível de interpretação e nessas interpretações dos sinais vislumbram o indivíduo como um todo maior que a soma das suas partes. Diz que é a Gestalt, a forma, a configuração, a estrutura.
Tudo bem. Até concordo. Tudo pode ser interpretado. Significado e significante. Ideia e a forma. Abstracto e concreto. Símbolo e signo…

Mas apesar do fascínio que possa sentir, há coisas que me deixam desconcertado. Muito mais perplexo e confuso do que se estivesse a olhar para uma série de pranchas cheias de borrões de tinta onde é suposto vermos algo, ou não. Seja como for, será sempre alvo de uma interpretação! O que é ou pode ser, diga-se, extremamente irritante!

Quantas vezes os sentimos a devassar-nos com o olhar, atentos ao pestanejar, aos gestos, às pausas... Sempre a procurar e a encontrar significados em tudo e mais alguma coisa.

Irritante, sobretudo quando não o solicitámos.

Nesse caso, Agostinho da Silva tem alguma razão “A psicologia é uma ciência pela qual tive sempre a maior das desconfianças porque sempre me pareceu uma detestável e condenável intervenção na vida alheia, uma quebra do que existe de mais sagrado, a intimidade espiritual de cada um”.

Bom, não serei assim tão radical. Excluo desta afirmação aqueles que recorrem à terapia ou que voluntariamente expõem a sua intimidade.

Mas não deixa de ser pertinente esta reflexão.

Talvez nela resida a distinção entre psicólogos e licenciados em Psicologia: o primeiro utiliza as ferramentas em proveito do Outro. O segundo, não necessariamente.

Imaginem a vossa casa. Convidam alguém a entrar e pedem-lhe que vos ajude a arrumá-la. Ele pega nas suas ferramentas e técnicas de trabalho, faz o que lhe pediram (ou tenta o melhor que pode e sabe), e sai porta fora.

Agora imaginem alguém que, usando ferramentas e técnicas semelhantes, entra na vossa casa mas apenas para procurar algo e sai, ou que a deixa ainda mais desarrumada e sai.

Como aqueles canalizadores que para arranjar os canos, rebentam com as paredes, mas depois não as voltam a colocar.

Bom, deve ser por isso que inventaram a ética.

Por isso, vós - Oh psis -, tendes tanto de fascinante como de assustador.

Dizia um amigo meu que “só precisa de a psicólogos quem não tem amigos”. Afinal, muitos problemas resolvem-se numa amena cavaqueira com um bom amigo. Pode ser igualmente eficaz e muito melhor para a auto-estima, porque o amigo ouve, aconselha e no final não apresenta a conta. Fá-lo porque gosta de nós e sai bem mais barato!

Mas continuo a gostar de vocês!

Psis I



Há uns tempos prometi algo acerca de Psis. Ainda não é desta. Para já, fica só a piaducha.

Psicólogo não adoece, somatiza.
Psicólogo não transa, liberta libido.
Psicólogo não estuda, sublima.
Psicólogo não dá vexame, surta.
Psicólogo não fofoca, transfere.
Psicólogo não tem ideias, tem insights.
Psicólogo não resolve problemas, fecha gestalt.
Psicólogo não se engana, tem actos falhados.
Psicólogo não muda de interesse, altera figura e
fundo.
Psicólogo não fala, verbaliza.
Psicólogo não conversa, pontua.
Psicólogo não responde, devolve a pergunta.
Psicólogo não desabafa, tem catarse.
Psicólogo não pensa nisso, respira isso.
Psicólogo não é indiscreto, é espontâneo.
Psicólogo não é gente, é estado de espírito.

Menina com balão

Mr. Smith & Mr. Wesson


"Listen to them. Children of the night. What music they make."

(in, Dracula, Bram Stoker, 1931)

Mulher



"Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E por que não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Por que não seria a mulher o intermédio entre o céu e a terra?"

(in Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano, 1844)

Dormias

Dormias.

Os meus dedos abandonavam lentamente a tua pele, onde antes tinham sucumbido ao prazer táctil de uma carícia. Um momento de ternura que me inundou o olhar.
Olhava-te, quando percebi que a tua imagem se desfocava através de um véu translúcido e tremeluzente, tornando o teu contorno liquefeito, como uma pintura a aguarela.

Em que pensava? Não sei. Em nada mais, além daquele instante, creio eu.
Procurei a razão pela qual deslizava uma pequena gota de água no teu ombro, que me apressei a apanhar. Não a sentiste. Dormias.

Ali, tão perto, sentia-te tão longe. Ou talvez fosse eu quem se afastava, numa súbita sensação de solidão, enquanto deitava a cabeça na almofada, confidenciando-lhe um suspiro.

Dormias.

Ouvia a tua respiração grave e serena entrecortando o silêncio da noite. Nela embalei a minha e nela embalei sonhos de amanhecer. Um raiar que, naquele momento, não conseguia vislumbrar através da cortina opaca tingida de escuridão.

Dormias. Um sono solto. Num alheamento profundo.

Silêncio




Deixou de falar no dia em que concluiu que não tinha nada interessante para dizer.

Quando sentiu que o que dizia não era interessante de ser escutado.

Quando concluiu que o que adquirira o mesmo conteúdo fastidioso das conversas que tantas vezes ouvira, demonstrando um interesse e uma curiosidade que não sentia, apoiadas em forçados sorrisos de circunstância.

Quantas vezes, dera por si a repetir, até à exaustão, as mesmas histórias, os mesmos exemplos, obrigando aqueles que o ouviam a colocar um ar insípido ou falsamente espantado ou interessado, se não tivessem a coragem suficiente para concluir-lhe as frases ou (directamente), recordar que já lhes tinha contado aquela história, uma e outra e outra e outra vez.

Palrava. Verbalizava horas de conversa vazia.

(Constatações meteorológicas óbvias e previsões falíveis acerca da previsão do tempo para o dia seguinte, acompanhadas por explicações pouco-nada científicas, mal fundamentando o calor de Outono e o frio de Verão. O clima sempre fora, por excelência, o grande intróito à conversa, ramificando-se depois para outros temas.)

Já não tinha nada novo para dizer.

Na verdade, talvez sempre tivesse tido muito pouco para dizer, limitando-se a dar contornos diferentes ou a enquadrar o discurso numa moldura requintada.

Reinventava narrativas e personagens, episódios que não recordava onde tinha visto, nem sequer, se os tinha vivido ou se lhos tinham contado. Por vezes, acrescentava-lhes uma ou outra laracha, se a inspiração o propiciasse, arrancando uma ou outra gargalhada a interlocutores, que lhe reconheciam uma personalidade afável e bem disposta.

De quando em quando, descobria um novo acontecimento que incorporava como uma lufada de ar fresco, afastando por instantes o ar bafiento e saturado. Mas rapidamente, este se consumia, retomando a rarefacção de uma atmosfera irrespirável.

Por tudo isso, tomara aquela decisão, firmada num pacto de silêncio.

Agora, mesmo quando perante alguém, que não conhecia, nem ao seu discurso pré-fabricado (o que deveria deixar à vontade suficiente e oportunidade para colocar a cassete no início), abstinha-se e não sentia a mínima vontade de o fazer. Furtava-se à conversa.

Pouco a pouco, ía-se fechando em si. Interiorizando e dialogando consigo.

Procurava poupar os demais da sua verborreia.

Simultaneamente, tendia a escapar-se da deles e autorizava-se a deixar de ouvir o que não lhe apetecia. A não ter de falar se não o queria fazer. A não conhecer, nem dar-se a conhecer se não o desejava.

Já nem a curiosidade conduzia a essa busca, porque deixava de a sentir. Era-lhe indiferente.

Igualmente indiferente se agora lhe achariam piada ou não. Que lhe acusassem a falta de simpatia ou de sociabilidade. Não queria saber.

Já não queria saber.

Calava-se.

A Árvore da Vida




Ao meu grande amigo LF


Aquela manhã, como muitas outras manhãs.

Naquela manhã, como em muitas outras manhãs, pai e filha, percorriam o mesmo trajecto.

Ele, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, conduzia.

Ela, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, sentada no banco de trás, olhava pela janela um caminho que nunca era igual, recriado a cada viagem, como só uma criança consegue fazer.

Naquela manhã, ao contrário de todas as outras manhãs, impôs-se um desvio súbito.
Na rua, homens podavam árvores. Ramagens e troncos caídos no chão interpunham-se entre eles e o percurso habitual rumo à escola.

Para ele, a redefinição de trajecto, o imprevisto inoportuno, o contratempo, viagem contra o tempo.

Para ela, um acontecimento singular, uma interrogação, um agitar na cadeira e um avivar do olhar curioso. Olhos amendoados, cor de mel, adoçavam-lhe a visão do mundo. Olhos grandes, abertos à imensidão.

A novidade do nunca visto exigia as questões de quem deseja perceber, nem que seja para depois reinterpretar numa lógica muito própria.

- Pai, porque é que os senhores estão a cortar as árvores?! (Como era possível tamanha bizarria? Não saberiam os senhores que as árvores são um bem precioso?)

- Não estão a cortar as árvores, filha, estão a podá-las, para que depois cresçam mais fortes. – Esclareceu.

- Ah. Porque as árvores são muito importantes. Elas dão oxigénico! – Reforçou.

- Oxigénio. – Corrigiu.

- Pois. E sem oxigénico morremos. – Recordou.

- Sim filha. É verdade. Mas diz-se: Oxigénio. – Confirmou e voltou a corrigir.

Sim. Oxigénio…

Quedou-se em silêncio com a respiração suspensa em pensamentos soltos. Olhos fixos para lá da janela. Fixos e indiferentes à paisagem que passava ao lado do carro. Indiferente ao tempo, ao espaço, a desvios… Naquele momento, nada a desviava. Olhava para lá do visível, absorta num momento seu. E pensava em árvores. Árvores e ramos.

Pensava no aglomerado de folhas, tombadas na estrada, ainda agarradas aos ramos. Não mais se agitariam ao vento, nem trariam sombra… Aquelas árvores, como as outras árvores, que nos dão oxigénio deixavam, elas próprias, de respirar. Árvores que são vida, que nos dão vida e que agora morriam e com elas morria a vida. E teve pena delas. E daqueles que seriam privados do seu oxigénico.

O pai, de soslaio olhava-a através do espelho retrovisor. Estranhava-lhe o silêncio súbito. Intrigava-o. Interrogava-se acerca do que estaria ela a pensar. Ela, a sua filha. E deu consigo a pensar em árvores. Árvores e frutos.

Uma árvore que tinha um fruto, belo e doce, ainda preso a si. O fruto que era vida, fruto da vida, e que era a vida da árvore. E a árvore amava-o e protegia-o entre a folhagem. E sentiu alegria. E esse era o seu oxigénio.

Subitamente,

- Pai. Já sei porque morreu a avó! Morreu porque cortaram a árvore dela!

E aquelas palavras…

Palavras a interromper o silêncio. Palavras a adensar o silêncio. Palavras a embargar palavras. Palavras a convocar lágrimas. Palavras a invocar as raízes que nos definem, que nos sustentam, que nos alimentam.

Numa simplicidade poética foi expressa toda a metafísica. A essência de uma árvore contida numa semente.

Palavras que ficaram a ecoar num momento muito especial, daqueles que nos marcam e nos fazem "ganhar" o dia.

Palavras a dispensar palavras.

Naquela manhã. Pai e filha. Árvore e fruto. Árvore genealógica. Ramificavam reflexões, a partir de uma ramificação no percurso. Obstáculos imprevistos que conduziram a um caminho, a derivar para outros caminhos. Ramificações a partir de um tronco comum.

Naquela manhã, entre tantas outras manhãs, viveu-se uma alegoria da vida.

Naquela manhã, celebrou-se a Árvore da Vida.

Ícaro



Sonhou. Sonhou demasiado e foi Morfeu.
Sentiu-se apaixonado e sentiu-se elevar,
Ganhou asas para voar
E foi Ícaro em direcção ao céu.

Voou. Voou alto, directo ao Astro Radioso.
Nada temendo, tudo amando ao seu redor,
E viu a sua beleza e sentiu o seu calor,
E deslumbrou-o este voo glorioso...

Mas o Sol, temendo esta aproximação,
Lançou-lhe os seus raios fatais.
Beleza e calor, transformaram-se em lanças mortais
Dirigidas ao seu coração

Estrategicamente disparadas para o matar.
Ferido de morte... o sonho morreu...
Morre o Amor, morre Morfeu
E, desamparado, Ícaro despenha-se no mar...



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

(Álvaro de Campos)

A Árvore da Vida

Xeque-Mate

A Mui Nobre Arte

Há uns tempos, dei comigo a pensar…

coisa rara na minha pessoa que tende para a letargia e, consequentemente, para o pecado da preguiça

…que invejo…

novo pecado que já me está a levar a uma outra reflexão, completamente distinta da inicial que me leva a concluir que também sou um pecador

Bom, dizia que invejo aquelas pessoas que têm sempre algo a dizer a cerca de qualquer assunto, sem que fiquem remetidas a um qualquer silêncio constrangedor. Como aqueles que me acontecem de cada vez que me falam da Liga dos Campeões e me deixam a questionar que tipo de campeões usa ligas, em que modalidade? Ou que vão existir mais dois árbitros num campo de futebol, perfazendo um total de seis, e eu pensava que existia apenas um! Que há um modelo GT super Turbo de injecção electrónica que gasta não sei quantos litros aos 100, quando eu mal sei a matrícula do meu! Ou que há uma nova conjectura sócio-ecónomica na América do Sul que vai influenciar largamente as árvores petrificadas da Patagónia e que isso será muito mau para o Mundo. Ou que a Bébé faltou à vernissage do Martim de Vasconcellos, porque se zangou com a Pituxá e agora isso vai levar à queda da República.

Enfim, perder-me-ia aqui em exemplos da minha total e completa ignorância (também deve haver um pecado para isto, de certeza) que ficam sempre expressos no meu olhar esbugalhado de “burro a olhar para um palácio” ou em gaffes verbalizadas, quando lá arrisco um qualquer comentário. Geralmente quando o faço revela-se quase sempre desastroso e acompanhado por risos e uma palmadinha nas costas, cheia de compaixão: “- Tadinho!”

Ter sempre uma opinião formada e algo a comentar, nem que seja para dizer que nada se sabe, mas mantendo um ar de quem sabe e está informado de tudo, excepto daquele pormenor, é algo que exige mestria.

Decidi, assim, apostar na minha formação pessoal e apurar-me nessa mui nobre arte!

Pedi aos meus amigos que enviassem via mail novidades sócio-económico-culturais, actualizadas ao minuto.

Subscrevi diversas newsletters.

Tornei-me um encaminhante e reencaminhante informativo.

Espero que esta medida me catapulte para um lugar cimeiro no concurso de arremesso de parangonas e me destaque na rúbrica Actualidades.

Também vou passar a dizer sempre alguma coisa, nem que seja apenas para assinalar o facto de que “Eu estive aqui!”. Um pouco à semelhança das inscrições que certo tipo de pessoas deixa para trás, assinalando esse grande feito que foi: ter estado lá! No fundo, o nosso Padrão dos Descobrimentos Pessoal.

E já comecei a praticar!

No outro dia, ainda mal me tinham dito um nome de um livro -zás! - já eu estava a dizer: - Li! Muito bom! Faz-nos pensar. Marcou a minha vida. (não posso esquecer de ir comprá-lo!).

E num fôlego, acrescentei: Vai decorrer o Festival Anual de Arte Contemporânea Neo-Cubista com Ligeiros Laivos de Impressionismo. - Fiz um brilharete!
E desta vez fui eu a ser secundado pelo comentário súbito de alguém: Sim, Sim. Decorre todos os anos. (Esta até eu concluía!)

Depois arrisquei-me no campo tecnológico apresentando as vantagens de aderir à instalação de infra-vermelhos e antenas de captação via satélite que, num verdadeiro sistema wireless, pode ser ainda activado por voz ou outros sons que consigamos produzir com o corpo, bastando que associemos o som à função desejada, faz o interface entre o LCD (que funciona por touchscreen) e o router que por sua vez liga o portátil ao micro-ondas, à torradeira, alimenta o gato e activa o despertador, depois de ter enchido a banheira e acertado o relógio de pulso e carregado o telemóvel (e ficam a saber que está em desenvolvimento um dispositivo sub-cutâneo, para nunca o esqueçamos e que dispensa bateria, roubando impulsos electromagnéticos produzidos pelo cérebro, para que estejamos sempre contactáveis). Domótica, dirão. Muito mais além, meus caros, muito mais além!

Agora tenho andado a compor uma apresentação em diapositivos com fotos de quadros e esculturas. Só me falta ir à wikipédia tirar umas frases acerca dos estilos e uma ou outra com maior profundidade. Depois, vou enviá-la para todos os meus contactos, para que saibam que o seu amigo também é versado em artes.

No futuro, dedicar-me-ei a culinária e vinhos. E darei valentes puxões de orelhas a todos aqueles que se enganarem nas proporções necessárias à confecção de um soufflé e que não o saibam acompanhar com o respectivo vinho frutado com os taninos no sítio, que terá sempre de ser D.O.C. e I.P.R. de categoria V.Q.P.R.D. que me faz sempre lembrar S.P.Q.R., que também eram grandes apreciadores de vinho mas que, invariavelmente, o vomitavam, juntamente com a comida.

Por agora vou deleitar-me na degustação de um cocktail exótico, decorado com palhinha, sombrinha chinesa colorida, penacho de fitas brilhantes, rodelas de ananás, laranja e limão, uma miniatura do Cristo-Rei que segura uma azeitona numa mão e uma cereja na outra.

Enquanto aguardo que o sol de fim de tarde venha pousar sobre o mar (cheio de romantismo, como tem de ser), vou beberricando e escrevendo acerca desta experiência fantástica aconselhando vivamente à partilha da magnífica paisagem da Cova do Vapor.

Fios

Fios que se entrecruzam nas malhas dos dias bordados.
Teias que teces,
Linha a linha,
Teia a teia.

És aranha. És tecelão. És bordadeira.

Teces a vida na Roda de Fiar. Roda da Fortuna.
Fias na Fortuna.

Fiar e desconfiar. Fiar e desfiar. Fiar e desafiar.

Roda. Roca. Fuso.
À roda. Rocambolesco. Confuso.

Dás pela fieira.
Passas à fieira.
As linhas com que coses, presas por um fio,
Dias a fio,
De fio a pavio.

O Equilibrista




Todos os anos chegavam à cidade numa caravana. Estacionavam no mesmo terreno baldio as roulottes velhas e erguiam a enorme tenda às riscas amarelas e azuis, quebradas por remendos que cobriam cicatrizes antigas - memórias de outros tempos, de outras paragens, de outros espectáculos realizados a coberto daquelas paredes de lona.

No exterior, os leões, os tigres, os póneis e os elefantes, faziam as delícias dos mais pequenos que acorriam ao local, precipitando-se para a frente das jaulas com o fascínio a brilhar-lhes nos olhos.

Pelas ruas eram afixados cartazes coloridos com rostos de palhaço, imagens de tigres a saltar para círculos de fogo. Apelos à presença e promessas de divertimento e emoções fortes, num espectáculo nunca antes visto.

Nessa noite, após as gargalhadas arrancadas pelos palhaços e o espanto e incredibilidade provocados pelo mágico, chegava a vez do equilibrista.

No centro da arena, um homem gordo com um casaco de abas de grilo, cartola numa mão e microfone na outra. Dirigiu-se aos “Meninos e meninas. Senhoras e senhores. Respeitável público”, anunciando o próximo número.

Chamava a atenção para a altitude.

(Todos os olhares se concentravam agora no tecto da tenda)

Chamava a atenção para a longitude.

(Todos os olhares percorreram o arame, unindo os dois pontos que o mantinham retesado e suspenso no ar)

O homem gordo anunciou o equilibrista e este surgiu ao público, no meio de um círculo de luz.

Entrou em passos de corrida e com um sorriso no rosto, estacando num gesto ensaiado, como que a dizer, “Aqui estou!” Fez uma vénia breve a agradecer os aplausos entusiastas e deu mais uns passinhos de corrida, sempre acompanhado pelo halo luminoso que o acompanhava enquanto subia, degrau a degrau, na direcção da plataforma. Aí, aguardava-o uma assistente com uma vara longa e uma venda para os olhos.

Ao chegar ao topo, olhou para baixo, para as cabecinhas minúsculas e mãos que se agitavam e retribuindo-lhes com um aceno. Para a equipa de paramédicos que se concentrava numa das entradas. Para uma equipa de assistentes que esticavam uma rede piso de areia, mas que não ergueram.

Ouviu o apresentador chamar a atenção para o facto dele não saber sequer se iria ter rede abaixo de si, suscitando a comoção do público.

Olhou para a frente, para a outra extremidade do arame.

Pegou na vara e fez sinal à assistente para que esta lhe vendasse os olhos.

Olhou para dentro de si.

Naquele momento, abateu-se sobre a tenda um silêncio quebrado apenas por um rufar de tambor que acompanhava cada gesto, cada passo.

Lentamente, conduziu o pé ao arame. Sentiu-o. Tacteou-o e deu o seu primeiro passo na escuridão, como quem salta para o desconhecido. Avançou, e pensou na rede que não sabia se estava lá para lhe amparar uma possível queda. Sabia-a estendida no chão, mas desconhecia-a erguida. Dependia exclusivamente do seu equilíbrio, da sua capacidade de orientar-se no escuro e de uma confiança que depositava cegamente nos assistentes.

A cada ligeiro desequilíbrio, elevavam-se gritos, reacções assustadas que não ouvia, porque o bater do seu coração abafava qualquer outro som. Agarrava mais firmemente a vara, como se agarrasse a vida. Vida suspensa por um fio de aço frio. Tinha medo. Por mais vezes que tivesse repetido aquele exercício, sentia sempre medo. Sentia uma vontade imensa de retirar a venda, mas não o conseguia fazer ali, algures no arame. Só podia seguir em frente ou deixar-se cair. Mas deixar-se cair no vazio sem saber se a rede estava lá?

O suor escorria-lhe pelo rosto. Os músculos, tensos, tremiam-lhe e faziam tremer a linha ténue e incerta, fronteira entre tanta coisa que lhe atravessava a mente, naquela travessia.

Medo. Angústia. Coragem. Desespero. Certeza da incerteza.

“A rede? Onde raio estaria a rede?” – pensou. De que lhe adiantava saber que existia, se desconhecia se estava lá?

Sorriso. Escárnio. Maldizer a sorte.

Paulatinamente, sentia-se invadir por um desprendimento, de quem caminha sem querer saber, num abandono solitário. Tinha de seguir e era isso que iria fazer até onde conseguisse. Dar o seu melhor. Afinal, era isso que o público esperava de si.

E se caísse e a rede o segurasse, tanto melhor.

A Última Visão



Ontem perguntaram-me se queria saber quando ía morrer.

Uma pergunta que já me fiz inúmeras vezes.

Uma resposta que sempre se me foi difícil de encontrar.

Tento colocar-me nesse cenário, imaginando o modo como alteraria a minha percepção da Vida e daquela que me restasse. Faria uma série de coisas que sempre quis fazer ou simplesmente deprimiria por saber que escasso era o tempo para o fazer?

Sei que passaria em revista toda a minha vida. Concluí, igualmente, que passaria grande parte dos meus últimos dias a escrever cartas. Sim, cartas! Cartas endereçadas a uma série de pessoas que considero significativas na minha vida, que não poderia ignorar ou esquecer, nem permitir que se considerassem ignoradas e esquecidas. Pessoas a quem devo ou sinto que devo essas últimas palavras, esse último gesto.

Pediria desculpa pelos meus erros e omissões. Por ter ferido e ofendido.

Dirigiria profundos agradecimentos.

Quantas pessoas nos são queridas e especiais sem que lho digamos? E não havendo um dia que não pensemos nelas e lhes desejemos o melhor, de que adianta se não lho dizemos, se não o demonstramos, assumindo que elas o sabem. Mas, e se não souberem, porque não o sentem?

Por isso, carta a carta, linha a linha, palavra a palavra, procuraria a redenção das minhas faltas.

Contudo, nova questão: Porque simplesmente não o fazemos? Porquê esperar pelos “últimos dias”? Porque nos preocupa apenas a redenção na morte? Quando, provavelmente, é tarde demais?

Pessoas existem a quem o digo e manifesto, que o sabem sem que tenha de lhes dirigir uma última mensagem. E esse facto deixa-me um pouco mais aliviado e feliz por saber que tento, pelo menos, corrigir essa falha em mim.

Outras existirão a quem não o faço e que, possivelmente, nunca o farei. Poderei nunca vir a ter essa oportunidade.

Mas, mais do que saber quando se irá morrer, interrogo-me acerca da última imagem que se leva da vida. Qual é a última coisa que veremos antes de fechar os olhos pela última vez? Qual o último som? Teremos tempo para dizer uma última palavra? Qual?

Ontem fiquei a saber que o cérebro leva cerca de cinco minutos a morrer. E nesses eternos cinco minutos, qual será a nossa percepção? O que sentiremos?

Ontem, recordei uma frase índia: “Hoje é um belo dia para morrer”.

Talvez isso fosse o melhor. Poder escolher o momento. Um momento em que nos sentíssemos invadidos por uma paz de espírito tão grande, contemplando algo que se nos assemelhasse tão belo e que adormecêssemos calmamente a olhar e dizendo: estou tão feliz que morria neste momento.

Breve

Brisa que passa num sopro,
Invisível e breve.
Carícia fugaz.
Carícia suave.
Não sabemos de onde veio;
Desconhecemos para onde vai.
Anónima.
Passa, mas não se detém.
Perto de todos;
Próximo de ninguém.

Reflexão

Diz-me.

Alguma vez te puseste a pensar, num determinado momento, como ali chegaste? Àquele preciso instante?

Eu explico.

Imagina-te a conversar com alguém que acabaste de conhecer. Ou dando por ti num local que, até então, era para ti um cenário inimaginável. Ou, simplesmente, a tomar um café.

Nesse momento, pára!

Pára e pensa toda a toda a tua vida até esse instante. Em todo o teu percurso, escolhas, decisões, acasos ou não. Como se toda a tua vida confluísse para esse exacto momento, até àquela fracção de segundo que te fez suspender o tempo e o espaço. Como se tivesse sido esse o propósito de teres perdido aquele autocarro longínquo. Daquele ano escolar que repetiste. De teres decidido faltar àquela aula para estar com os amigos. Daquela festa a que decidiste ir ou faltar. Daquele telefonema que atendeste. Daquela zanga que tiveste. Dos serões que passaste. De um beijo perdido algures. Enfim...

Recordas todas as acções que fizeste ou que deixaste por fazer. O que disseste e o que deixaste por dizer.

Subitamente, dás contigo imerso em pensamentos, a recuar a tantos momentos e a procurar, em cada um deles, o sentido da tua vida.

Pessoas que conheceste pelo caminho. Umas, tornaram-se amigos. Outras desejavas nem as ter conhecido. Outras, ainda, nem sequer te deixaram a memória das feições ou do nome, mas algum papel também devem ter desempenhado na tua vida, para que agora as recordes.

E o teu semblante carrega-se. E o teu semblante alivia-se num sorriso. E o teu olhar torna-se líquido na emoção da alegria e da tristeza, recordando-te a dualidade.

Tudo aquilo que foste e que és e que te conduziu àquele momento inicial.

Talvez o lamentes ou não. Talvez te carregue o semblante, ou não.

Na Sala do Fundo II

Acordou muito tempo antes do Tirano do Tempo lhe vir recordar que era tempo de levantar-se.

O Tempo, sempre o Tempo…

(O Tempo contra o qual corremos. O Tempo, que nos esforçamos por acompanhar numa corrida louca, contra o tempo. Maratonista incansável ao lado do qual corremos até ao dia em que não conseguimos mais, em que a falta de fôlego nos vence ou quando, simplesmente, decidimos abandonar a corrida a meio. Mas ele, o Tempo, não pára, não espera. E corre, corre até ao Infinito.)

Há algumas horas que lutava contra o tempo. Fitava o tecto do quarto sem conseguir dormir. Virava-se na cama, de um lado para o outro, procurando posição, mas o sono, esse, tinha-lhe fugido, deixando a porta aberta para os sonhos acordados.

(Sonhos, se sonhos lhes quisermos chamar porque outro nome menos agradável poderão ter, que nos invadem a mente sem serem convidados. Que nos obrigam a deambular pelo Universo Onírico, surreal, mas não necessariamente falso. Distorções do real, sim, mas que derivam da realidade. Talvez por isso, nos incomodem tanto, por essa, ainda que infíma relação com o real, com a origem dessa abstracção.)

A casa estava silenciosa.

Contudo, havia um murmúrio constante e uma voz que lhe falava. Uma voz permanente que lhe falava naquele quarto vazio, naquela casa vazia, naquele espaço vazio, onde ecoavam as palavras.

(Palavras que escutamos à nossa volta e dentro de nós. Palavras nem sempre num tom suave e aprazível. Palavras que compõem frases terminadas em exclamações, interrrogações e afirmações, que nos espantam, interrogam e constatam. Tal como os sonhos, nem sempre correspondem ao real. Mas partem dele. Podem distorcê-lo, para nosso alívio ou infortúnio.)

Virou-se novamente na cama.

Sacudiu a cabeça, procurando evitar a voz. Pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos que teimavam em escutar.

Na janela aberta, bailava a cortina. Bandeira desfraldada, ao sabor da corrente de ar fresco que lhe invadia o quarto. Bandeira de uma nação desolada, de um país imaginário, de uma terra longínqua, de navio pirata, de tréguas, de um qualquer país de conto de fadas, idílico. Um qualquer refúgio longínquo, onde nunca sequer se esteve.

Lenço acenado.

Fantasma ululante.

Ou, simplesmente, uma cortina. Esvoaçando ao sabor do vento.

No agitar dos pensamentos que lhe sacudiam a mente, contorcia-se num estado febril, acentuado pelo cansaço.

Novamente, os olhos fixos no tecto rendem-se à insónia.

Levantou-se e dirigiu-se à porta do quarto. Fechada.

Rodou a maçaneta. Continuou fechada.

Sacudiu a porta e a porta permaneceu fechada.

Espanto e estupefacção, conduziram o olhar em redor. A uma observação atenta que não tinha feito antes. Aquele quarto, não era o seu quarto de dormir. Não percebeu como ali tinha ido parar, nem como não reparara na diferença. Dir-se-ia que ali se tinha deslocado num qualquer estado de sonambulismo. Num momento de inconsciência que não tinha percepcionado?

Definitivamente, não estava no seu quarto! Reconhecia agora aquele espaço: câmara recôndita e obscura que tanto temia, onde evitava entrar, de onde temia não sair.

As paredes fechavam-se sobre si. Faltava-lhe o ar. Sentia a cabeça rodopiar e uma sensação de náusea crescia dentro de si.

A voz tornava-se cada vez mais elevada, mais difícil de afastar, como se fosse um arauto maldito.

“Não, não é verdade!”.

A voz murmurava-lhe.

“Não quero saber!”.

A porta que não abria.

A voz dizia-lhe.

“Sai daqui! Deixa-me, sai daqui!”.

A voz alertava.

“Pára!”.

As paredes curvavam-se.

“Basta!”

A porta fechada.

Deixou-se cair de joelhos e curvou-se sobre si. Mãos pressionadas contra os ouvidos. A porta fechada, apenas aberta para os pesadelos acordados. Um grito. As paredes fechavam-se e abatiam-se sobre si. A voz.

O Relambório

Blá bláblábláblá bláblábláblábláblá.

Blá bláblábláblábláblá blá blá blá blá blábláblábláblábláblá bláblá!

- Bláblábláblábláblá b lá b lá b lá?
- Bl á b lá bláblá bláblábláblábláblá bláblá blábláblá.

Bláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blábláblábláblábláblá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.
Bláblábláblábláblábláblábláblábláblá blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá bláblábláblábláblábláblábláblá.
Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.

Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blábláblááááááááá.
Blá.
Blá blá blá blá blá bláblábláblábláblá blábláblábláblá blábláblábláblábláblá?!
Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blá bláblábláblá bláblábláblábláblá bláblá blábláblá.

Blá.
Blá blá blá.
B lá Blá Blá.
Blá B lá Blá blá bláblá.

Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá
blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá
Blá bláblábláblá bláblábláblábláblá bláblá blábláblábláblábláblábláblábláblá.
Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá
blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá
blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá.

Blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá. Blá!

Blá.

Blá.B…lá… B…lá… Blá!

Mãos dadas

Mão dada na mão dada.
Mão dada, mão oferecida.
Na mão dada, mão recebida.

Mãos dadas,
Dados nas mãos,
Jogam o Destino,
Em cada mão.

Dados lançados,
Dados recolhidos,
Destinos traçados,
Nas linhas da mão.

Mãos entrelaçadas,
Linhas cruzadas,
Nas palmas da mão.

Destinos unidos,
Caminhos partilhados,
Caminhos percorridos,

De mãos dadas.

Mão na mão.
"Escrever, faço-o muito diferentemente do que falo; e falar é, para mim, muito diferente de pensar; mas penso também de forma muito diferente de como deveria de facto pensar e, assim, até ao mais profundo da maior obscuridade."
(Kafka)

Metáforas, Alegorias, Paradoxos e Trocadilhos

Sentou-se à escrivaninha e abriu o velho alfarrábio. Ritual cumprido com o rigor matemático da inevitabilidade. Uma escribomania incurável.

Páginas manuscritas diariamente, compendiadas em trinta e quatro capítulos completos.
Registos do passado, relatos do presente e antevisões do futuro, agrupavam-se.

Pegou no aparo e esticou o braço na direcção do tinteiro. Inspirou e preparou-se para escrever.
Desta vez os seus gestos eram seguidos de perto. Os seus pensamentos, acompanhados enquanto os registava.

O livro estava aberto.

- Vá, anda, acompanha-me. – disse, convidando à valsa. Em três tempos.

Escreveu no topo da página: "Nem tudo é o que parece. Pode ser mais do que é, para lá da aparência."

Uma exortação expressa num paradoxo, um véu subliminar pousado delicadamente sobre a superfície.

Com gestos fluidos, deixava rastos de tinta sobre a folha de papel que a absorvia letra a letra, palavra a palavra, numa composição anagramática, alegórica.

“O RAMO.

Certo dia, dirigiu-se à margem de um rio que corria impetuoso na direcção de um mar desconhecido. Esta imagem afigurou-se-lhe assustadora mas, simultaneamente e, talvez por isso mesmo, tão atraente e irresistível. Um mistério que pedia para ser desvendado.

Pegou numa canoa e colocou-a à tona da água. Entrou. Sentou-se e pegou nos remos. A canoa agitava-se ao sabor desprendido da ondulação. O coração agitava-se ao sabor das ondas da emoção.

Soltou a amarra que o prendia umbilicalmente à segurança da margem e iniciou o seu percurso.
Rio curioso! Ora agitado. Ora calmo.

Também as suas margens eram belas e horríveis, tristes e alegres.

Rio, mar de sensações. Rio curioso."

Pousou o seu olhar no outro olhar, que agora fixava o seu. Suspensos um no outro, procurando reacções.

- Acompanhas-me? – Procurou

- Sim! Creio que sim – Resposta atirada na brevidade de um sorriso.

Prosseguiu.

“Na turbulência agitada, num momento incauto, a canoa virou.

Caiu na água.

Faltou o pé.

Na corrente que tudo arrasta, com uma fúria louca e imparável, que não se compadece, esbracejou e procurou agarrar-se para escapar aos abismos ignotos que o desconhecido encerra.

Eis que na margem do rio encontrou o ramo.

Agarrou-o com todas as forças.

O ramo, um dos mais importantes da árvore da vida. Tão poderoso. Mas que se parte tão facilmente. Estável e instável. Uma segurança insegura.

Resistindo, tudo suporta. rosa avalom.

Quebrando-se, devolve-nos ao turbilhão, ao arrastar violento. só a morte dói .

Contudo, não deixamos nunca de o procurar, nem de o segurar com toda a firmeza.

Uma dualidade paradoxal.”

Paradoxos. Sempre os paradoxos e a sua desconcertante anulação, na afirmação de si mesmos.
Afirmativos. Contraditórios.

Pousou o aparo. Soprou levemente sobre a tinta, petrificando-a sobre a pálida folha de papel.

O livro continuava aberto.

- Percebeste o que escrevi?

- Acho que sim. Segui a senda das tuas palavras, por caminhos de Luz e de Sombra. Falas em trocadilhos de forças em equilíbrio. É isso?

-Yin e Yang – gracejou – Sim. Mais ou menos isso.

- Interpretar o que está além. Ler para lá das letras.

- Tal e qual. Como quando se compra um perfume. Temos o frasco. Temos o seu cheiro. Mas para lá de ambos, temos a sua essência.

- A visibilidade e a invisibilidade.

Ambos ficaram presos no silêncio.

Mudos

Ocaso do dia que finda no acaso dos dias que seguem.

- (…) - Tentou dizer algo. Mas as palavras fugiam-lhe muitas vezes quando perdiam o suporte escrito.

Talvez porque fosse mais visível na sua invisibilidade e dissesse mais naquilo que não diz.

E novo paradoxo: o dito ou o não dito? Aquilo de que se fala ou aquilo de que se cala?

Sem Título (Mas com Ternura)

Sigo o caminho indicado por três sinais próximos, redondos, que me levam até ao final de um olhar. Intenso, quando submerso naquilo que não consegue dizer por palavras. Semicerrado, quando a luz inesperada o surpreende.

Gosta de enigmas, de os propor e de os desvendar.
Gosta de apostar, de ganhar e de perder.
Gosta de livros, de os ler e de os cheirar.
Gosta das quimeras grandes e das quimeras pequenas.
Gosta de tudo e gosta de nada.
Gosta.
Genuinamente.

Mais acima, um arquear da sobrancelha esquerda, em jeito de intriga internacional, como diria o Fermín, a adivinhar mensagens encriptadas. A direita move-se a espaços, quando o desafio não era esperado. Um momento suspenso, a análise da situação, um remexer de nariz, e a resposta imprevisível. Irónica. Brincalhona.

Gosta de versos.
Dos mais romanescos aos mais pós-modernos, onde as minúsculas e as MAIÚSCULAS
se
on
c em
torc
para ganhar um espaço no papel.
Mas duvida que Verão rime com Andaluzia…


Desço. No braço direito, o aviso inequívoco: material radioactivo. Tarde demais! Quando o descubro já sabia da inevitabilidade. Contaminada irremediavelmente num campo de trigo. Os dentes-de-leão rodopiam no ar e cheira a fim de tarde de um qualquer mês de Setembro.

Sabe contar histórias.
Faz do mais pequeno acontecimento do dia

uma iguaria exótica.
Mestre na arte de misturar especiarias.
A banalidade adquire sabor.
Veste o avental e a vida acontece.
Conta-a como se fosse a última vez.
Cala-se como se fosse a primeira.


Volto a subir. Olhos nos olhos e faço-lhe cócegas. O riso transborda para dentro de si e agita-se como se no momento a seguir se desfizesse num jogo de lego, espalhando as peças sem ruído. Ri e chora em silêncio…

Chega em pezinhos de lã.
Instala-se com os ténis calçados,
os atacadores em nó de cabeça-de-cotovia.
Quando parte deixa-nos as pantufas…

Vestimos o manto da invisibilidade e sentamo-nos a jogar xadrez. As peças movem-se, sem pressa, na modorra contida de quem não quer chegar ao fim. Adiamos o xeque-mate e movemos os peões em labirintos de faunos. Trocamos a torre com o rei, num roque mais ou menos alternativo. A rainha desloca-se no tabuleiro, sem nunca sair do quadrado. Sublevamos o bispo e os cavalos saltam num galope gracioso. O Rei tomba. Xeque-mate! Jogamos outra partida?

De manhã,
o nó feito e desfeito.
À noite,
o entrelaçar do afecto.
Cativante.
Bonito.
Surpreendente.
Em todas as horas do dia.



Escrito por: MG

Penso Que Penso

"Caminho em silêncio
Distraído por um pensar
Que me turba o andar
Penso que penso
E fico a ouvir-me a pensar
Que penso que penso
Este pensamento
Torna-se um tormento
Penso que penso
Que penso que penso
Sempre o mesmo a dobrar
Como vozes a segredar
Penso que penso
Que penso que penso
Que ainda vou flipar
Flipar

ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM

Já não posso mais andar
Com tanta voz a murmurar
Levado pelo vento
Penso que penso
Que penso que penso
Que penso que penso
E se penso em parar
É mais um pensamento
Que me fica a ecoar
Outra voz a segredar
Outra voz a murmurar
Murmurar...

Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar
Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar

ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM"

(Mão Morta)

Corre.




Corre.
Corre na direcção oposta.
Corre. Corre. Corre. Não pares!
Não penses! Limita-te a correr,
Até sentires os pulmões em fogo. Corre.
Até os tendões gritarem. Corre.
Até seres apenas um vulto. Corre.
Até seres um ponto perdido no horizonte. Corre.

Deixa tudo para trás. Corre, por Deus, corre!!!
Esquece-te de ti mesmo e corre.

Corre até à exaustão.
Corre até seres apenas suor e dor.
Suor, que lava lágrimas de dor,
Dor, expelida num grito,
Grito, que sai do peito,
Peito, onde o coração rebenta de dor,
Dor, que se sobrepõe à dor. Corre!

Esquece o cansaço que te pesa.
(Inspira)

Cospe a raiva.
(Expira)

Foge da multidão. Corre.
(Inspira)

Foge do impossível. Corre.
(Expira)

Foge de ti.
(Expia)

Discos Perdidos - Elephant Gun

Carta

Querida Madrinha de Guerra,

Espero que estas linhas a encontrem de boa saúde.

Por aqui, continuo a minha Comissão.

Sinto-me tão cansado, Madrinha. Sinto que cedo ante a exaustão causada por este permanente estado de vigilância a que me obrigo.

Por vezes, já nem sei se o inimigo é real, ou se é o medo que mo faz ver nos momentos mais incríveis. Mesmo fechando os olhos, vejo-o. Sinto a sua presença em toda a parte. Estou tão cansado e não consigo dormir. Aliás, temo adormecer. Temo que se o fizer não volte a acordar ou, acordando, ser demasiado tarde para escapar. Receio não conseguir assegurar o meu posto, deixando-o cair em mãos inimigas.

Resisto a morteiros e obuses. Tenho a metralha gravada nos ouvidos...

(Está um calor sufocante. Custa-me respirar.)
Este constante estado de ansiedade é, para mim, a angustiante realidade dos dias que passo neste campo de batalha, onde me sinto só. Só e demasiado fraco, nos limites da resistência que não sabia ter, nem que as minhas forças abarcavam. E todos os dias são um teste constante. Cada saída pelas picadas é um percurso eterno. O coração palpita de tal modo que quase o consigo ouvir.

Alegremente me apartava desta agonia e a dispensava.

Sempre fui uma pessoa de bem, Madrinha. Mas aqui, aqui neste Inferno, várias vezes dou comigo transido pela fúria e pela raiva. Há momentos em que não me reconheço. Ainda ontem, quando fazia a barba, num momento em que a manhã estava calma, olhei o pequeno espelho de bolso, apoiado num ramo e não reconheci o reflexo que ele me devolvia.

Mas falemos de coisas mais agradáveis.

Querida Madrinha, como corre a vida na Metrópole?

Recordo as tardes no jardim da praça. Suponho que o jardim esteja lindo e florido, como sempre costumava estar nesta altura do ano. O que eu dava por um copo de capilé fresco, enquanto lia o jornal na esplanada.

Aqui também há flores e árvores. Mas são diferentes. Mais assustadoras, ainda que igualmente belas e viçosas. É a selva. Gostava, um dia, trazê-la cá Madrinha. Mas numa altura em que a pudesse ver com outros olhos.

Agora me despeço. Obrigado por me ler nestas linhas e acolher os meus lamentos no seu regaço.

Ficarei a aguardar novas. Logo que possa, lhe escreverei, Deus me dê forças para o fazer.

Cumprimentos

A Resposta

Tenho oitenta anos. Estou velho.

Por vezes acho que perfiz esta idade há muitos anos atrás. Como se tivesse tido apenas duas idades: criança e velho. Mas não é sobre isso que aqui irei escrever. (Perdoem estes desvarios).

Escrevo e enquanto o faço, fito as minhas mãos. Mãos com que ainda agarro languidamente a vida. Vida que teima em escapar-se por entre os dedos, semelhantes a raízes retorcidas. Âncoras carcomidas, fundeadas num porto antigo.

Olho a folha de papel. Ah! Olhos cansados que adormecem cada vez mais cedo! Pálpebras que se assemelham a cobertores pesados. Tapando-os. Fechando-os.

O sono da idade cai sobre mim.

Tenho o rosto sulcado pelas linhas do tempo. Linhas que cosem memórias de um tempo em que não as tinha. Linhas que me prendem a um tempo que já não tenho.

Memórias e recordações. Algumas irremediavelmente perdidas. Outras inesquecíveis. Alegrias e tristezas convivendo lado a lado formando um misto paradoxal de querer recordar e esquecer, de reviver e de nunca o ter vivido.

Uma vez mais, peço perdão pela facilidade com que me afasto para lá do objectivo inicial, do propósito, trocando-o por divagações entorpecidas, despertas nestas palavras.

Escrevo para responder a uma questão. Uma pergunta tão simples, formulada há quarenta e cinco anos atrás.

Certa noite, quando me que me preparava para dormir, foi-me colocado um desafio: “que momento comigo recordarás aos oitenta anos”?

Uma simples pergunta. E tive de esperar quarenta e cinco anos para lhe responder. Quarenta e cinco anos e muitos momentos. Mais que o único que me foi pedido.
Elejo dois: Um. Final de tarde na praia. O poncho de lã colorida. Sentados na areia. O vento frio. A procura do calor dum corpo no outro corpo num abraço apertado. Amanhecia naquele entardecer.

Dois. Negro e Vermelho. Uma dança. Um leque sustentando a sedução num olhar. Rendição e excitação noutro. Olhos fatais. Mãos fatais. Mãos esvoaçando como pombas. Uma actuação no palco da Paixão.

Oitenta anos e sento-me entre torvelinhos de areia, com a cabeça baixa e fecho os olhos para a evitar. Fecho os olhos e vejo.

Oitenta anos e sou espectador. Abro os olhos e fico suspenso naquele rodopiar. O olhar fatal. Esquerdo. Direito. Remate.