Ícaro



Sonhou. Sonhou demasiado e foi Morfeu.
Sentiu-se apaixonado e sentiu-se elevar,
Ganhou asas para voar
E foi Ícaro em direcção ao céu.

Voou. Voou alto, directo ao Astro Radioso.
Nada temendo, tudo amando ao seu redor,
E viu a sua beleza e sentiu o seu calor,
E deslumbrou-o este voo glorioso...

Mas o Sol, temendo esta aproximação,
Lançou-lhe os seus raios fatais.
Beleza e calor, transformaram-se em lanças mortais
Dirigidas ao seu coração

Estrategicamente disparadas para o matar.
Ferido de morte... o sonho morreu...
Morre o Amor, morre Morfeu
E, desamparado, Ícaro despenha-se no mar...



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

(Álvaro de Campos)

A Árvore da Vida

Xeque-Mate

A Mui Nobre Arte

Há uns tempos, dei comigo a pensar…

coisa rara na minha pessoa que tende para a letargia e, consequentemente, para o pecado da preguiça

…que invejo…

novo pecado que já me está a levar a uma outra reflexão, completamente distinta da inicial que me leva a concluir que também sou um pecador

Bom, dizia que invejo aquelas pessoas que têm sempre algo a dizer a cerca de qualquer assunto, sem que fiquem remetidas a um qualquer silêncio constrangedor. Como aqueles que me acontecem de cada vez que me falam da Liga dos Campeões e me deixam a questionar que tipo de campeões usa ligas, em que modalidade? Ou que vão existir mais dois árbitros num campo de futebol, perfazendo um total de seis, e eu pensava que existia apenas um! Que há um modelo GT super Turbo de injecção electrónica que gasta não sei quantos litros aos 100, quando eu mal sei a matrícula do meu! Ou que há uma nova conjectura sócio-ecónomica na América do Sul que vai influenciar largamente as árvores petrificadas da Patagónia e que isso será muito mau para o Mundo. Ou que a Bébé faltou à vernissage do Martim de Vasconcellos, porque se zangou com a Pituxá e agora isso vai levar à queda da República.

Enfim, perder-me-ia aqui em exemplos da minha total e completa ignorância (também deve haver um pecado para isto, de certeza) que ficam sempre expressos no meu olhar esbugalhado de “burro a olhar para um palácio” ou em gaffes verbalizadas, quando lá arrisco um qualquer comentário. Geralmente quando o faço revela-se quase sempre desastroso e acompanhado por risos e uma palmadinha nas costas, cheia de compaixão: “- Tadinho!”

Ter sempre uma opinião formada e algo a comentar, nem que seja para dizer que nada se sabe, mas mantendo um ar de quem sabe e está informado de tudo, excepto daquele pormenor, é algo que exige mestria.

Decidi, assim, apostar na minha formação pessoal e apurar-me nessa mui nobre arte!

Pedi aos meus amigos que enviassem via mail novidades sócio-económico-culturais, actualizadas ao minuto.

Subscrevi diversas newsletters.

Tornei-me um encaminhante e reencaminhante informativo.

Espero que esta medida me catapulte para um lugar cimeiro no concurso de arremesso de parangonas e me destaque na rúbrica Actualidades.

Também vou passar a dizer sempre alguma coisa, nem que seja apenas para assinalar o facto de que “Eu estive aqui!”. Um pouco à semelhança das inscrições que certo tipo de pessoas deixa para trás, assinalando esse grande feito que foi: ter estado lá! No fundo, o nosso Padrão dos Descobrimentos Pessoal.

E já comecei a praticar!

No outro dia, ainda mal me tinham dito um nome de um livro -zás! - já eu estava a dizer: - Li! Muito bom! Faz-nos pensar. Marcou a minha vida. (não posso esquecer de ir comprá-lo!).

E num fôlego, acrescentei: Vai decorrer o Festival Anual de Arte Contemporânea Neo-Cubista com Ligeiros Laivos de Impressionismo. - Fiz um brilharete!
E desta vez fui eu a ser secundado pelo comentário súbito de alguém: Sim, Sim. Decorre todos os anos. (Esta até eu concluía!)

Depois arrisquei-me no campo tecnológico apresentando as vantagens de aderir à instalação de infra-vermelhos e antenas de captação via satélite que, num verdadeiro sistema wireless, pode ser ainda activado por voz ou outros sons que consigamos produzir com o corpo, bastando que associemos o som à função desejada, faz o interface entre o LCD (que funciona por touchscreen) e o router que por sua vez liga o portátil ao micro-ondas, à torradeira, alimenta o gato e activa o despertador, depois de ter enchido a banheira e acertado o relógio de pulso e carregado o telemóvel (e ficam a saber que está em desenvolvimento um dispositivo sub-cutâneo, para nunca o esqueçamos e que dispensa bateria, roubando impulsos electromagnéticos produzidos pelo cérebro, para que estejamos sempre contactáveis). Domótica, dirão. Muito mais além, meus caros, muito mais além!

Agora tenho andado a compor uma apresentação em diapositivos com fotos de quadros e esculturas. Só me falta ir à wikipédia tirar umas frases acerca dos estilos e uma ou outra com maior profundidade. Depois, vou enviá-la para todos os meus contactos, para que saibam que o seu amigo também é versado em artes.

No futuro, dedicar-me-ei a culinária e vinhos. E darei valentes puxões de orelhas a todos aqueles que se enganarem nas proporções necessárias à confecção de um soufflé e que não o saibam acompanhar com o respectivo vinho frutado com os taninos no sítio, que terá sempre de ser D.O.C. e I.P.R. de categoria V.Q.P.R.D. que me faz sempre lembrar S.P.Q.R., que também eram grandes apreciadores de vinho mas que, invariavelmente, o vomitavam, juntamente com a comida.

Por agora vou deleitar-me na degustação de um cocktail exótico, decorado com palhinha, sombrinha chinesa colorida, penacho de fitas brilhantes, rodelas de ananás, laranja e limão, uma miniatura do Cristo-Rei que segura uma azeitona numa mão e uma cereja na outra.

Enquanto aguardo que o sol de fim de tarde venha pousar sobre o mar (cheio de romantismo, como tem de ser), vou beberricando e escrevendo acerca desta experiência fantástica aconselhando vivamente à partilha da magnífica paisagem da Cova do Vapor.

Fios

Fios que se entrecruzam nas malhas dos dias bordados.
Teias que teces,
Linha a linha,
Teia a teia.

És aranha. És tecelão. És bordadeira.

Teces a vida na Roda de Fiar. Roda da Fortuna.
Fias na Fortuna.

Fiar e desconfiar. Fiar e desfiar. Fiar e desafiar.

Roda. Roca. Fuso.
À roda. Rocambolesco. Confuso.

Dás pela fieira.
Passas à fieira.
As linhas com que coses, presas por um fio,
Dias a fio,
De fio a pavio.

O Equilibrista




Todos os anos chegavam à cidade numa caravana. Estacionavam no mesmo terreno baldio as roulottes velhas e erguiam a enorme tenda às riscas amarelas e azuis, quebradas por remendos que cobriam cicatrizes antigas - memórias de outros tempos, de outras paragens, de outros espectáculos realizados a coberto daquelas paredes de lona.

No exterior, os leões, os tigres, os póneis e os elefantes, faziam as delícias dos mais pequenos que acorriam ao local, precipitando-se para a frente das jaulas com o fascínio a brilhar-lhes nos olhos.

Pelas ruas eram afixados cartazes coloridos com rostos de palhaço, imagens de tigres a saltar para círculos de fogo. Apelos à presença e promessas de divertimento e emoções fortes, num espectáculo nunca antes visto.

Nessa noite, após as gargalhadas arrancadas pelos palhaços e o espanto e incredibilidade provocados pelo mágico, chegava a vez do equilibrista.

No centro da arena, um homem gordo com um casaco de abas de grilo, cartola numa mão e microfone na outra. Dirigiu-se aos “Meninos e meninas. Senhoras e senhores. Respeitável público”, anunciando o próximo número.

Chamava a atenção para a altitude.

(Todos os olhares se concentravam agora no tecto da tenda)

Chamava a atenção para a longitude.

(Todos os olhares percorreram o arame, unindo os dois pontos que o mantinham retesado e suspenso no ar)

O homem gordo anunciou o equilibrista e este surgiu ao público, no meio de um círculo de luz.

Entrou em passos de corrida e com um sorriso no rosto, estacando num gesto ensaiado, como que a dizer, “Aqui estou!” Fez uma vénia breve a agradecer os aplausos entusiastas e deu mais uns passinhos de corrida, sempre acompanhado pelo halo luminoso que o acompanhava enquanto subia, degrau a degrau, na direcção da plataforma. Aí, aguardava-o uma assistente com uma vara longa e uma venda para os olhos.

Ao chegar ao topo, olhou para baixo, para as cabecinhas minúsculas e mãos que se agitavam e retribuindo-lhes com um aceno. Para a equipa de paramédicos que se concentrava numa das entradas. Para uma equipa de assistentes que esticavam uma rede piso de areia, mas que não ergueram.

Ouviu o apresentador chamar a atenção para o facto dele não saber sequer se iria ter rede abaixo de si, suscitando a comoção do público.

Olhou para a frente, para a outra extremidade do arame.

Pegou na vara e fez sinal à assistente para que esta lhe vendasse os olhos.

Olhou para dentro de si.

Naquele momento, abateu-se sobre a tenda um silêncio quebrado apenas por um rufar de tambor que acompanhava cada gesto, cada passo.

Lentamente, conduziu o pé ao arame. Sentiu-o. Tacteou-o e deu o seu primeiro passo na escuridão, como quem salta para o desconhecido. Avançou, e pensou na rede que não sabia se estava lá para lhe amparar uma possível queda. Sabia-a estendida no chão, mas desconhecia-a erguida. Dependia exclusivamente do seu equilíbrio, da sua capacidade de orientar-se no escuro e de uma confiança que depositava cegamente nos assistentes.

A cada ligeiro desequilíbrio, elevavam-se gritos, reacções assustadas que não ouvia, porque o bater do seu coração abafava qualquer outro som. Agarrava mais firmemente a vara, como se agarrasse a vida. Vida suspensa por um fio de aço frio. Tinha medo. Por mais vezes que tivesse repetido aquele exercício, sentia sempre medo. Sentia uma vontade imensa de retirar a venda, mas não o conseguia fazer ali, algures no arame. Só podia seguir em frente ou deixar-se cair. Mas deixar-se cair no vazio sem saber se a rede estava lá?

O suor escorria-lhe pelo rosto. Os músculos, tensos, tremiam-lhe e faziam tremer a linha ténue e incerta, fronteira entre tanta coisa que lhe atravessava a mente, naquela travessia.

Medo. Angústia. Coragem. Desespero. Certeza da incerteza.

“A rede? Onde raio estaria a rede?” – pensou. De que lhe adiantava saber que existia, se desconhecia se estava lá?

Sorriso. Escárnio. Maldizer a sorte.

Paulatinamente, sentia-se invadir por um desprendimento, de quem caminha sem querer saber, num abandono solitário. Tinha de seguir e era isso que iria fazer até onde conseguisse. Dar o seu melhor. Afinal, era isso que o público esperava de si.

E se caísse e a rede o segurasse, tanto melhor.

A Última Visão



Ontem perguntaram-me se queria saber quando ía morrer.

Uma pergunta que já me fiz inúmeras vezes.

Uma resposta que sempre se me foi difícil de encontrar.

Tento colocar-me nesse cenário, imaginando o modo como alteraria a minha percepção da Vida e daquela que me restasse. Faria uma série de coisas que sempre quis fazer ou simplesmente deprimiria por saber que escasso era o tempo para o fazer?

Sei que passaria em revista toda a minha vida. Concluí, igualmente, que passaria grande parte dos meus últimos dias a escrever cartas. Sim, cartas! Cartas endereçadas a uma série de pessoas que considero significativas na minha vida, que não poderia ignorar ou esquecer, nem permitir que se considerassem ignoradas e esquecidas. Pessoas a quem devo ou sinto que devo essas últimas palavras, esse último gesto.

Pediria desculpa pelos meus erros e omissões. Por ter ferido e ofendido.

Dirigiria profundos agradecimentos.

Quantas pessoas nos são queridas e especiais sem que lho digamos? E não havendo um dia que não pensemos nelas e lhes desejemos o melhor, de que adianta se não lho dizemos, se não o demonstramos, assumindo que elas o sabem. Mas, e se não souberem, porque não o sentem?

Por isso, carta a carta, linha a linha, palavra a palavra, procuraria a redenção das minhas faltas.

Contudo, nova questão: Porque simplesmente não o fazemos? Porquê esperar pelos “últimos dias”? Porque nos preocupa apenas a redenção na morte? Quando, provavelmente, é tarde demais?

Pessoas existem a quem o digo e manifesto, que o sabem sem que tenha de lhes dirigir uma última mensagem. E esse facto deixa-me um pouco mais aliviado e feliz por saber que tento, pelo menos, corrigir essa falha em mim.

Outras existirão a quem não o faço e que, possivelmente, nunca o farei. Poderei nunca vir a ter essa oportunidade.

Mas, mais do que saber quando se irá morrer, interrogo-me acerca da última imagem que se leva da vida. Qual é a última coisa que veremos antes de fechar os olhos pela última vez? Qual o último som? Teremos tempo para dizer uma última palavra? Qual?

Ontem fiquei a saber que o cérebro leva cerca de cinco minutos a morrer. E nesses eternos cinco minutos, qual será a nossa percepção? O que sentiremos?

Ontem, recordei uma frase índia: “Hoje é um belo dia para morrer”.

Talvez isso fosse o melhor. Poder escolher o momento. Um momento em que nos sentíssemos invadidos por uma paz de espírito tão grande, contemplando algo que se nos assemelhasse tão belo e que adormecêssemos calmamente a olhar e dizendo: estou tão feliz que morria neste momento.

Breve

Brisa que passa num sopro,
Invisível e breve.
Carícia fugaz.
Carícia suave.
Não sabemos de onde veio;
Desconhecemos para onde vai.
Anónima.
Passa, mas não se detém.
Perto de todos;
Próximo de ninguém.