SOLILÓQUIO

Personagem quixotesca, grotesca e de triste figura. Caminhas pela Vida igualmente imerso em mundos e realidades tirados de contos de fadas.

Não segues sozinho, mas sentes-te eternamente só; cego; acorrentado ao negrume da tua alma. Não caminhas só, mas por às vezes por nem o veres, não mereces mais que a solidão e que te abandonem à tua sorte, remetendo-te ao Oblívio. A única companhia que sentes verdadeiramente é a desse espectro que te acompanha, anjo caído, personagem de raros, mas intensos lampejos. E nesses momentos ergue as asas e irradia uma luz diáfana que te ilumina. E consegues tornar-te um ser agradável, quase interessante.

Mas tu, vil criatura, depressa quebras o encanto e revelas a tua natureza: o engano e a decepção que és.

E cada acto teu vira-se contra ti com dupla intensidade.

Percorres caminhos tortuosos. Construíste um castelo sombrio cheio de claustros que é o teu refúgio e é a tua fortaleza e é a tua prisão. Aí te escondes, por detrás das suas muralhas, tantas vezes derrubadas, reconstruídas, e em alas que nunca mais conseguiste reerguer. Por vezes dou contigo a deambular pelas suas ruínas como um fantasma e ouço os teus lamentos. E ouço-te pedir misericórdia. Por vezes, sinto compaixão e ajudo-te. Outras vezes, porém, sou eu quem te dá o golpe final, enterrando mais fundo o punhal.

Oh, miserável alma penada! Vives entre Sombra e Luz, numa doença de alma interminável.

Condeno-te à pior das lutas com o pior dos teus inimigos, que sou eu. Eu, que sou o teu resquício de escrúpulo e sentimento de ti mesmo. Sou o teu maior tormento, e hei-de mortificar–te perpetuamente. Inflamo-te o sangue, tornando-o um rio ardente que te corre nas veias. Eu sou a raiva contida dentro de ti. Sou o grito que te rasga a alma e que fica amordaçado na garganta. Sou o murmúrio constante no teu ouvido. O demónio aprisionado no teu ser. O fel que te amarga o espírito e o veneno que não cospes.

Acompanhar-te-ei para sempre…

Talvez um dia nos reconciliemos.

Talvez um dia consigas proceder à transmutação do teu Ser.

Talvez um dia ambos nos consigamos libertar.

Escrito por: Sphynx

OVERKILL

O carro confortável, moderno. Equipado de fábrica com cadeiras para crianças, sensores, GPS. Um sistema de som a rivalizar com as melhores discotecas. Eram amigos de infância. Sentaram-se nos bancos aquecidos. Ele no lugar do condutor. Ela no lugar do pendura. Os Miúdos sentados no banco de trás. Apertaram os cintos e prepararam-se para mais uma viagem até ao Quintal do Zé. Uma rotina que se tinha instalado desde que aquilo tinha acontecido.
A embalar a viagem, que durava pouco mais de meia hora, uma playlist também ela inscrita naquela rotina. Uma viagem pelos anos oitenta, com incursões breves pela música pop mais recente. Das colunas saía o som ensurdecedor dos Queen, Soft Cell ou Cult. Faziam estremecer o carro e silenciavam o diálogo. No banco de trás, os Miúdos cantavam Linkin Park, num inglês como só as crianças de seis anos o sabem inventar.
E um “Overkill”, cantada por Colin Hay, numa versão acústica dos Men at Work. Que a perseguia a Ela durante os dias que se seguiam, a cantarolar a melodia dentro da cabeça, sem saber porquê, à procura do sentido da música. O desconforto sentido de quem não gosta do género musical, mas que não consegue evitar a atracção. Uma mariposa na luz do candeeiro...
No Quintal do Zé, o jantar cúmplice de amigos de longa data, a evitarem a conversa sobre o que tinha acontecido, a contornarem o assunto. Os Miúdos a brincarem, numa nova felicidade descoberta e alinhavada por eles. A sobreviverem à catástrofe, como só as crianças de seis anos o sabem fazer.
A viagem de regresso. Os Miúdos a tombarem de imediato no banco de trás. O cansaço da brincadeira, mil e uma vezes inventada, a vencer os monstros que existem debaixo da cama. A dormirem um sono solto, em silêncio. E uma playlist a emudecer diálogos, a apagar a conversa. Num grito silencioso, Ele a dizer que combatiam os fantasmas outro dia. Ela, no silêncio gritante da música a desejar que a viagem chegasse ao fim. E um “Overkill”, a persegui-la nos dias que se seguiam. A desejar aniquilar a mariposa...
Um dia, Ela foi à descoberta do sentido do desconforto. Numa playlist que lhe dizia pouco, uma música que a incomodava. Enfrentou os fantasmas e evocou as artes mágicas que expulsam os monstros para reinos distantes. Queimou as asas... Olhou para a música e decifrou-lhe a letra: Overkill - an excess of what is necessary or appropriate for a particular end. E entendeu…
A rotina da viagem até ao Quintal do Zé. Imposta pelos Miúdos. A Miúda, filha dela, a procurar num seu igual o irmão que não tinha, porque os pais se tinham separado precocemente. O Miúdo, filho dele, a preencher com Ela o lugar vazio do pendura. A procurar a mãe que tinha partido recentemente, numa viagem dolorosa e inesperada, sem regresso. A Morte, um monstro debaixo da cama, a ser silenciada num grito ensurdecedor, como só duas crianças de seis anos o sabem fazer...

Escrito por: Maktub


Overkill - Colin Hay (Men at Work)

http://www.youtube.com/watch?v=F0DsJQdpwwI

I cant get to sleep
I think about the implications
Of diving in too deepAnd possibly the complications

Especially at night
I worry over situations
I know will be alright
Perhaps its just imagination

Day after day it reappears
Night after night my heartbeat, shows the fear
Ghosts appear and fade away

Alone between the sheets
Only brings exasperation
Its time to walk the streets
Smell the desperation

At least theres pretty lights
And though theres little variation
It nullifies the night
From overkill

Day after day it reappears
Night after night my heartbeat, shows the fear
Ghosts appear and fade away
Come Back Another Day

I cant get to sleep
I think about the implications
Of diving in too deep
And possibly the complications

Especially at night
I worry over situations
I know will be alright
Its just overkill

Day after day it reappears
Night after night my heartbeat, shows the fear
Ghosts appear and fade away

O Maior Espectáculo do Mundo

Sentou-se frente ao espelho e olhou o reflexo triste que este lhe devolvia. O espectáculo estava prestes a começar e aguardavam a sua actuação. Era suposto fazê-los sorrir. Era esse o seu papel. Era isso que esperavam de si, indiferentes ao seu estado de alma.
Pegou num boião e abriu-o, tirando do seu interior uma porção de creme branco que começou a espalhar pelo rosto, tornando-o ainda mais lívido. À medida que o espalhava, ía ocultando os sulcos que lhe desciam em direcção ao queixo. Conteve um soluço.
A pouco e pouco, daquela máscara neutra, apenas emergiam dois olhos raiados de sangue… tristes. De seguida, pegou num lápis e contornou-os.
Abaixo do olho direito, pintou um triângulo azul, e acima de ambos, desenhou umas sobrancelhas arqueadas, tão delicada e firmemente quanto a sua mão trémula lhe permitia.
Novo contorno. Desta vez em torno da boca, que depois preencheu de cor vermelha, criando a ilusão de um sorriso rasgado, tão diferente da expressão que os seus lábios caídos apresentavam. O espelho ia-lhe devolvendo uma imagem grotesca que ganhava forma. Uma imagem de alegria que alegria não sentia por debaixo daquela cobertura colorida.
E aquela imagem contrastante agudizou o sofrimento que se esforçou por amordaçar dentro do peito. O espectáculo estava prestes a começar. Era suposto fazê-los sorrir. Era esse o seu papel, a personificação da comédia.
Um último retoque. Uma bola vermelha fixada sobre o nariz completava a máscara.
Levantou-se da cadeira. Inspirou um último folêgo e saiu porta fora em direcção à arena. Ali, os espectadores aguardavam mais uma actuação sua, naquele espectáculo da Vida. Forçou um sorriso, mostrando uma fileira de dentes que sobressaía por entre a pintura rubra, tropeçou, fez uma pirueta e caiu. Levantou-se e fez uma vénia, por entre gargalhadas e aplausos.

Um conto nhonhinhas

Olhando-a, adivinha-se uma pessoa em harmonia com a Vida. Alguém que saúda os dias como se fossem o primeiro e os abraça intensamente como se fossem o último.
Não é difícil imaginá-la a acordar pela manhã, capturando a luz do Sol e fazendo desta a centelha que lhe fica a brilhar nos olhos marotos, irradiando-a no sorriso aberto que se lhe rasga no rosto.
Quando perto dela é difícil, no mínimo, não ser tocado pela alegria contagiante, numa manifesta e constante boa disposição de espírito onde parece não haver lugar para nuvens. É um arredar da seriedade cinzenta e monocórdica do quotidiano.
Stress? Sim, venha ele! Transformemo-lo numa azáfama em tons de laranja, num turbilhão de emoção, que ainda dará azo a uma gargalha ou outra, provocada pelos lapsos induzidos pela pressão.
A Vida é, para ela, uma tela de mil e uma cores e com outras tantas tonalidades. Por isso, para quê olhar apenas as mais escuras e sombrias, se as outras também lá estão? Para quê recorrer ou centrar a atenção em apenas uma parte da vasta paleta? Misture-se tudo!
E assim vê ela o Mundo. E canta! E canta mal e desafinada, mas canta! E que lhe importa isso? Sem vergonha, sem receio do que possa soar aos ouvidos dos demais, exprime a sua força de viver numa cacofonia desajeitada, que afinal é uma melodia mais bela e viva do que muitos poderiam conseguir dentro do tom.
Com toda esta energia e fúria pela vida chama, por pirraça, a todos os que não a têm ou demonstram uma atitude mais lamechas, de “nhonhinhas”, procurando evidenciar os seus semblantes cabisbaixos, que se deixam descolorir em tons pálidos e apagados.
Os “nhonhinhas” são, portanto, o oposto de si, longe daquela postura enérgica, feliz e bem disposta; descontraída e radiante. O inverso da sua aparente imagem. E digo aparente porque se tivermos o cuidado de olhar bem, sem negar nada do que foi dito, apercebemo-nos que, a par da explosão de cor com que pinta os dias e tinge a Vida, não é de todo alheia às cores frias e cinzentas. Recusando-as, conhece a sua existência.
Há os que trazem consigo o Sol e aqueles que apenas vislumbram o céu nublado. Os primeiros, apesar de saberem a existência do Inverno, centram-se no calor e na luz do Verão, procurando a todo o custo evitar o toque da chuva e a sombra. Os segundos, muitas vezes esquecem-se que acima das nuvens brilha o Astro Radioso.
Mas apesar de evitar o toque da chuva, não deixam de a ver e nem sempre lhe conseguem fugir, passar incólumes aos dias de tempestade. Sentem os seus efeitos com maior intensidade. Mas há que manter a máscara colorida e o sorriso desenhado.
Portanto, há uma recusa. Assumir é aceitar e render-se a algo que enfraquece e que acentua uma existência monocromática.
Ela é, no fundo, uma “nhonhinhas” não assumida. Mas isso é um segredo nosso.
E aos que convivem com ela, resta invejá-la e agradecer a partilha do céu azul, das flores, do arco-íris e dos aromas quentes do Verão.

Aldebaran

“Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!”
(Florbela Espanca)

O dia chegava ao fim. Cansado, o Sol deitava-se no seu leito salgado e cobria-se com um manto de mar, até nada mais restar que uma linha vermelha estendida no horizonte.
Entretanto, uma pálida Lua ergueu-se para acender o céu nocturno.
Pálida e fria a sua tez. Vermelhas as duas linhas que se abriam num sorriso. Nocturno o seu olhar. Era a hora do seu amanhecer!
Saiu para a rua. Sombra movendo-se nas sombras. Tudo vendo e não sendo visto, caminhou pelas ruas ainda movimentadas da cidade, como quem procura. Caminhava calmamente para um encontro que não sabia onde, nem quando iria acontecer e muito menos com quem. Mas sabia a inevitabilidade desse momento. Já lhe tinha acontecido antes.
Enquanto deambulava, perdia-se em pensamentos, em imagens de tempos passados, em resquícios de memórias que ora lhe carregavam o semblante, ora lhe colocavam um brilho nos olhos, ora um sorriso nos lábios. Simultaneamente, olhava as pessoas que com ele se cruzavam sem o ver, absortas na azáfama do regresso a casa, das compras, do trânsito…
Parou no meio da rua. Imóvel. Invisível. Nocturno.
Olhou. Observou. Procurou.
Uma criança que chorava com uma mão segura na da mãe e a outra agarrando o que restava do chupa-chupa que tinha caído ao chão. Uma mulher que ria ao telefone. Um homem que olhava insistentemente para o relógio, contando o tempo entre bafos sôfregos no cigarro. Um cão que tentava atravessar a estrada. Uma velha que arfava carregada de sacos, contudo mais leves que o peso da idade que lhe pesava nos ombros e lhe vincava a face. Um jovem abraçado à namorada, segredando-lhe juras de Amor Eterno, como se soubesse o que era a Eternidade. Um bêbado, que arrastava as pernas amparado pela parede suja e pelo amigo imaginário que discutia com ele, descarregava a sua frustração nos transeuntes. O lojista que fechava o cadeado, selando a grade da montra, enclausurando os doces que faziam as delícias de duas meninas que vinham da escola. Um sem-abrigo acomodava-se entre lixo e cartão. Um aleijado fazia tilintar moedas na caixa de plástico, chamando a atenção para a sua condição. Um homem, velho, com roupa em desalinho, ajeitava o boné aos quadrados. Duas pedras soltas no chão de calçada. Um gato olhava fixamente um pombo que, incauto, debicava uns grão de milho lançados por uma senhora de ar triste.
No meio daquela multidão, por entre o bulício, viu-a. Ali era o local. Aquele era o momento. Ela viera ao seu encontro.
Passou por ele, deixando suspenso um rasto de perfume imperceptível, mas que não lhe conseguiu ocultar. Tinha um olfacto capaz de o detectar. E cheirou a sua pele branca, o cabelo longo e negro, os lábios rúbeos e o sangue que lhe corria nas veias azuis. E seguiu aquele aroma. Vendo. Não sendo visto. Um fantasma entre os vivos. Uma sombra sem sombra, entre as sombras que a noite tem.
A inevitabilidade do predador que segue a presa. A angústia da sua vida residir na vida de outrém.
Terminava a noite. Cansado, deitou-se no seu leito salgado e cobriu-se com um véu de lágrimas. Nada mais restava que uma fina linha vermelha que lhe escorria dos lábios
Entretanto acendia-se no céu a Estrela da Manhã.

Escrito por: Nephilim

“O Amor é o apaziguar de uma dor constante”

Saí de casa e conduzi-me para a margem do Tejo. Sob os auspícios da Lua, caminhei pela rua escura acompanhado pelo marulhar das ondas, que vinham desfazer-se contra o paredão, acentuando o tom lúgubre daquele local parcamente iluminado pela tonalidade amarelenta dos candeeiros. Na margem oposta as luzes da cidade rivalizavam com as estrelas. Caminhei mais um pouco, fumei com o que restava do cigarro e após aquela última e demorada aspiração, entrei no “Lado Negro do Rio”.
Ali a atmosfera pouco contrastava com o exterior, mas agora estava mais sombrio que o habitual: sem música; luzes apagadas... As velhas paredes brancas estavam tingidas pelas roupas negras daqueles que, como eu, íam chegando para ouvir a declamar poesia, acompanhada pela melodia pungete da guitarra portuguesa. Poeta e músico ocuparam os seus lugares no centro da sala, rodeados por uma assembleia ávida. Eu sentei-me naquela Ágora improvisada e aguardei.
Silêncio. Ouvem-se os primeiros acordes.
“O Amor é o apaziguar de uma dor constante” – gritou subitamente a alma do poeta o verso arrancado à folha que segurava entre os dedos. Num gesto longo, dirigiu-a à pequena chama da vela e incendiou-a. Um clarão intenso revelou o olhar dolente com que a fixava. Despediu-se do pequeno pedaço de papel, largando-o em direcção ao solo, onde se consumiu num numa labareda efémera. Fogo-fátuo que se extinguiu num amontoado de cinza, devolvendo à sala a penumbra entrecortada por espectros que assistiam silenciosos. E o poeta continuou a declamar, acompanhado pelo tanger da guitarra que lhe amparava as palavras.
Imerso naquele momento cénico, procurei interpretar a metáfora ali representada.
Delicada, a chama da vela e ténue a sua luz. A escuridão à distância de um sopro. Frágil, mas suficientemente forte para nos captar o olhar, para inflamar palavras e incendiar quem lhe tocar. Farol entre trevas. Rasgão na cortina de noite. Suficientemente intensa para apaziguar uma dor constante.

Nota: A frase que dá título a esta história é retirada de um poema de António Boieiro. Assisti a esta actuação no bar "O Lado Negro do Rio". A declamação de poesia foi acompanhada à guitarra portuguesa por Lima

Escrito por: Nephilim

A Peregrina e o Guardião

No primeiro dia, ela chegou sem que ele tivesse percebido o seu aproximar. Do alto da sua torre de vigia, espantado com aquela aparição, perguntou-lhe: – Quem és tu?! – Ela ergueu o olhar e respondeu com uma voz rouca: – Eu? Uma peregrina! E sobre o meu nome tenho uma flor. E tu, quem és? – Desconfiado, fechou os dedos no punho da espada e apertou o escudo contra a armadura que lhe protegia o peito. – Chamam-me guerreiro glorioso e sobre o meu nome tenho uma tocha! – Respondeu, fitando-a.
– Desce da tua muralha – disse-lhe a desconhecida. Mas ele declinou o convite, permanecendo no seu posto, curioso mas firme. E ficou a vê-la dançar, rodopiando ao vento, acompanhada por um pequeno duende. E dançando, embrenhou-se na floresta de Sombras e de Sonhos, no meio da qual se erguia Core, o castelo que ele guardava diligentemente. Ela tinha ido, mas a sua voz rouca ainda ecoava na cabeça do Sentinela.
No segundo dia, ela regressou consigo trazendo a Aurora. Vinha pelo mesmo caminho do dia anterior e ele viu-a chegar.
– Desce da tua muralha – voltou ela a convidar. Ele anuiu ao pedido e, a medo, entreabriu a porta do castelo.
Via-lhe os olhos pela primeira vez. Castanhos. Bonitos. Um olhar profundo que lhe tragou o seu, para nunca mais o devolver. Mesmerizado, ouviu-a contar uma história que falava de um príncipe, de uma Rosa e de campos de trigo
– Sai. Vem cá para fora! – Pediu-lhe. Mas ele não o fez. E ficou a vê-la afastar-se, fixo nos seus cabelos longos e escuros, como escuro era o Ocaso e longa a noite que lhe sucedia.
Ao terceiro dia, ele aguardava-a à porta. Ela chegou com um sorriso, trazendo consigo um tabuleiro de xadrez. Sentou-se e disse: – Vem cá para fora. Vem jogar uma partida comigo!
Olhando para um lado e para o outro, avançou com passos receosos e sentou-se junto dela.
– Quem és tu, Peregrina, enviada por Deus? – Perguntou incrédulo.
– As peças brancas são tuas! – Respondeu ela com um piscar de olho e iniciaram o jogo – Xeque! – Disse ela, decorrido algum tempo.
Ele levantou-se num sobressalto. Não tinha conseguido antecipar aquela jogada. Ela levantou-se calmamente, levantou o braço, dirigindo-o a sua mão na direcção do peito dele e tocou-lhe na armadura. E não evitou aquele gesto. Desarmado, ficou a vê-la passear os dedos por marcas antigas, como se lhe estivesse a ler sina e a interpretar-lhes cada uma daquelas linhas da Vida. Foi invadido por uma torrente de sensações que não conseguia, nem queria controlar. Conduziu-a ao interior do castelo, até uma sala onde se lia no umbral: Anima, e aí, permitiu que ela lhe retirasse a couraça. ­
– Vem comigo – desafiou-o uma vez mais e uma vez mais ele recusou. Ele era o Sentinela; o Guardião daquela fortaleza que o protegia e que dependia dele para ser protegida.
Ela voltou-se e partiu, levando consigo mágoa no coração. Tinha em si o fogo da Paixão. Ele, preso às correntes da Razão, ficou na sala, guardando-a consigo, sentindo-se perdido e só. “Mate!” – murmurou em voz baixa.
Na manhã seguinte, ele aguardou-a fora da porta do castelo, mas ela não apareceu. E assim sucedeu nas longas horas daquele dia. Caiu a noite e com ela findava-se a esperança de a voltar a ver. O céu era um tecto plúmbeo que se abatia sobre si. O vento agitava com violência a copa das árvores e a chuva caía impiedosa, cobrindo o chão com um rio de lágrimas. Subitamente, num impulso louco, cortou as correntes que o prendiam. Não conseguia racionalizar o irracional. Não se racionalizam emoções. O Sentinela, já não o era. Era agora um peregrino a caminho por entre a tempestade, movido pela fé, em demanda de um Amor que já não conseguia negar.
Encontrou-a. Estava, afinal tão perto e, ainda assim, tão longe. (– Espero não ter chegado tarde demais – pensou).
– Cheguei demasiado tarde? – Perguntou-lhe, por fim, com voz trémula. E aquela pergunta ficou suspensa no ar, presa entre o olhar de ambos, pairando no espaço que os separava de um beijo.
E naquele beijo perceberam que o caminho de ambos começava naquele instante.

Escrito por: James Starfield