Aldebaran

“Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!”
(Florbela Espanca)

O dia chegava ao fim. Cansado, o Sol deitava-se no seu leito salgado e cobria-se com um manto de mar, até nada mais restar que uma linha vermelha estendida no horizonte.
Entretanto, uma pálida Lua ergueu-se para acender o céu nocturno.
Pálida e fria a sua tez. Vermelhas as duas linhas que se abriam num sorriso. Nocturno o seu olhar. Era a hora do seu amanhecer!
Saiu para a rua. Sombra movendo-se nas sombras. Tudo vendo e não sendo visto, caminhou pelas ruas ainda movimentadas da cidade, como quem procura. Caminhava calmamente para um encontro que não sabia onde, nem quando iria acontecer e muito menos com quem. Mas sabia a inevitabilidade desse momento. Já lhe tinha acontecido antes.
Enquanto deambulava, perdia-se em pensamentos, em imagens de tempos passados, em resquícios de memórias que ora lhe carregavam o semblante, ora lhe colocavam um brilho nos olhos, ora um sorriso nos lábios. Simultaneamente, olhava as pessoas que com ele se cruzavam sem o ver, absortas na azáfama do regresso a casa, das compras, do trânsito…
Parou no meio da rua. Imóvel. Invisível. Nocturno.
Olhou. Observou. Procurou.
Uma criança que chorava com uma mão segura na da mãe e a outra agarrando o que restava do chupa-chupa que tinha caído ao chão. Uma mulher que ria ao telefone. Um homem que olhava insistentemente para o relógio, contando o tempo entre bafos sôfregos no cigarro. Um cão que tentava atravessar a estrada. Uma velha que arfava carregada de sacos, contudo mais leves que o peso da idade que lhe pesava nos ombros e lhe vincava a face. Um jovem abraçado à namorada, segredando-lhe juras de Amor Eterno, como se soubesse o que era a Eternidade. Um bêbado, que arrastava as pernas amparado pela parede suja e pelo amigo imaginário que discutia com ele, descarregava a sua frustração nos transeuntes. O lojista que fechava o cadeado, selando a grade da montra, enclausurando os doces que faziam as delícias de duas meninas que vinham da escola. Um sem-abrigo acomodava-se entre lixo e cartão. Um aleijado fazia tilintar moedas na caixa de plástico, chamando a atenção para a sua condição. Um homem, velho, com roupa em desalinho, ajeitava o boné aos quadrados. Duas pedras soltas no chão de calçada. Um gato olhava fixamente um pombo que, incauto, debicava uns grão de milho lançados por uma senhora de ar triste.
No meio daquela multidão, por entre o bulício, viu-a. Ali era o local. Aquele era o momento. Ela viera ao seu encontro.
Passou por ele, deixando suspenso um rasto de perfume imperceptível, mas que não lhe conseguiu ocultar. Tinha um olfacto capaz de o detectar. E cheirou a sua pele branca, o cabelo longo e negro, os lábios rúbeos e o sangue que lhe corria nas veias azuis. E seguiu aquele aroma. Vendo. Não sendo visto. Um fantasma entre os vivos. Uma sombra sem sombra, entre as sombras que a noite tem.
A inevitabilidade do predador que segue a presa. A angústia da sua vida residir na vida de outrém.
Terminava a noite. Cansado, deitou-se no seu leito salgado e cobriu-se com um véu de lágrimas. Nada mais restava que uma fina linha vermelha que lhe escorria dos lábios
Entretanto acendia-se no céu a Estrela da Manhã.

Escrito por: Nephilim

1 comentário:

  1. Gostei. Da forma com está escrito. Do ritmo. Mas só percebi na segunda leitura. Macabro... Sinistro... Triste.

    Então isto é que é um Conto Gótico. Porquê?

    Besitos! :*

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