A Esfinge



Certa noite, quando o vento empurra a chuva e a torna oblíqua, quando esta bate no chão com tal intensidade que se volta a erguer criando uma neblina, um viajante caminhava entre a tempestade. Curvado sobre si, lutava contra a força do vento que lhe travava os passos, mal vislumbrando a estrada à sua frente que desaparecia entre a escuridão e o manto de água que a cobria.

Passado algum tempo chegou a uma encruzilhada. Estacou face a um vulto que se entrepunha entre si e o caminho a seguir. Uma figura alta que lhe dirigia um sorriso.

Ergueu o rosto e os seus olhos procuraram os do homem que o interpelava: deixá-lo-ia passar, se respondesse a uma pergunta.

O viajante dispôs-se ao desafio. O homem aproximou-se e segredou-lhe ao ouvido a pergunta.

Uma simples pergunta.

A princípio, pareceu-lhe demasiado fácil de responder. Preparava-se para o fazer quando percebeu que não conseguia. Deu consigo a confabular inúmeras explicações e a atribuir-lhe um carácter quase metafísico. Afinal, a questão revelava-se mais complexa do que inicialmente parecia e, como tal, não poderia ser respondido de forma leviana e precipitada.

O turbilhão que lhe atravessava a mente era maior do que aquele que continuava a abater-se sobre si.

Com um olhar triste, o homem ergueu o braço e apontou-lhe outra direcção.
Entre vento e chuva, com a questão a ocupar-lhe os pensamentos, o viajante encaminhou-se para a estrada que lhe havia sido indicada.

Caminhou. Caminhou até a chuva parar, até o vento se tornar brisa e vir acariciar-lhe o rosto. Até a Primavera devolver a vida aos campos, florindo-os com o desabrochar da esperança, num ciclo de vida que reinicia.

Sob um céu azul, o viajante era acompanhado pelo voo das andorinhas, pelo seu chilreio. Enchia de ar os pulmões, inalando o aroma fresco das flores e caminhava. Caminhava.

De quando em quando, a pergunta que o homem lhe fizera inquietava-lhe os pensamentos. Pensava que por não a conseguir responder fosse, por si, resposta suficiente.

Mas agora sentia-se seguro de si. Sim. Conseguiria com toda a certeza responder ao dilema. Sentia em si a resposta. Sorria e caminhava.

Ao final da tarde, quando o céu adquire tons dourados e laranja, vislumbrou adiante um vulto que se transformava em mulher, à medida que se aproximava. Esta encontrava-se sentada sob uma árvore que tinha a particularidade de possuir nas suas ramagens um único fruto.

Ele esboçou um sorriso e saudou-a.

Ela retribuiu o cumprimento, olhando-o com candura. Depois disse-lhe: para que pudesse passar, teria de responder a uma questão.

Imediatamente, o viajante recordou o episódio anterior. Abeirou-se dela e escutou a questão murmurada ao ouvido.

Ergueu-se com um sorriso triunfante a bailar-lhe no rosto.

Era a mesma pergunta! E desta vez sabia como responder!

Preparava-se para o fazer quando a palavra, a única e simples palavra que bastava, lhe morreu nos lábios. Uma única palavra, para uma simples pergunta que, uma vez mais, não se revelava assim tão simples. Porque, por vezes, uma simples palavra torna-se mais difícil de proferir do que a mais longa e aprofundada reflexão. Porque para a proferir na sua simplicidade quantas vezes não lhe subjaz precisamente uma longa e aprofundada reflexão?

Baixando os olhos, a mulher indicou-lhe outro caminho na encruzilhada.

Baixando os olhos, ele dirigiu-se ao seu novo rumo, desolado e curvo, enfrentando a tenebrosa tempestade naquele final de tarde de Primavera.

Percorreu trilhos, contornou escolhos, escolheu caminhos sob o sol de Verão que lhe queimava a pele.

Mas um dia, regressou à estrada e ao fazê-lo, foi uma vez mais confrontado. Uma terceira figura, igualmente masculina surgia-lhe pela frente, interditando-lhe a passagem.

Uma terceira vez, um desafio. Uma terceira vez, uma pergunta. Uma terceira vez, A pergunta.

Rapidamente começou a dissertar e a invocar explicações cósmicas enquanto desencadeava um vasto leque de hipóteses e constatações, olhando o prisma segundo uma multiplicidade de pontos de vista. E no final de todas essas análises, a conclusão nula a atirá-lo para o início.

Uma terceira vez a incapacidade de responder. E o homem, lamentando, indicou-lhe novo caminho.

Novo caminho, tornando demanda pela resposta ao enigma que lhe absorvia os pensamentos. Uma peregrinação por lugares longínquos que não se projectavam na paisagem que o se entendia à sua frente, mas nos cantos mais recônditos de si.

Cansado, arrastava consigo o peso nos ombros, alheio ao céu que se escurecia a tempos, à brisa que se elevava num vento frio, outonal. Limitava-se apenas a caminhar, sem questionar onde os seus pés o conduziriam, como se fosse uma folha ao vento, semelhante àquelas que agora se desprendiam das árvores.

Perdido nos seus pensamentos, quase nem reparava que pela quarta vez o seu percurso era entravado por uma nova esfinge, com um novo dilema, formulado numa pergunta que temia igual.

Uma nova mulher, a expor a mesma condição exigida para que pudesse continuar o seu percurso.

Com um olhar sagaz que procurava obter a resposta ainda antes de ter formulado a pergunta, segredou-lhe ao ouvido. Atenta aguardou a resposta. Mas resposta não obteve.

O viajante, não disse nada. Impeliu-se a uma nova vereda, deambulando entre encruzilhadas, debatendo-se com o eco das palavras dentro de si.

Sabia que a esfinge lhe continuaria a aparecer sob diversas formas e a colocar-lhe enigmas, a desafiar-lhe a resposta.

Paint it Black



I see a red door and I want it painted black
No colors anymore I want them to turn black
I see the girls walk by dressed in their summer clothes
I have to turn my head until my darkness goes
I see a line of cars and they’re all painted black
With flowers and my love both never to come back
I see people turn their heads and quickly look away
Like a new born baby it just happens every day
I look inside myself and see my heart is black
I see my red door and it has been painted black
Maybe then Ill fade away and not have to face the facts
Its not easy facin’ up when your whole world is black

No more will my green sea go turn a deeper blue
I could not foresee this thing happening to you
If I look hard enough into the settin’ sun
My love will laugh with me before the mornin’ comes

I see a red door and I want it painted black
No colors anymore I want them to turn black
I see the girls walk by dressed in their summer clothes
I have to turn my head until my darkness goes
Hmm, hmm, hmm,...
I wanna see it painted, painted black
Black as night, black as coal
I wanna see the sun blotted out from the sky
I wanna see it painted, painted, painted, painted black
Yeah!


Na tua Teia

Sangue e Sémen



Quando o frio dos olhos dela, se incendiou no lume dos dele. Quando o azul gelo dos lábios dele, tocaram os lábios vermelhos fogo, dela. Quando a pele fria. Quando a pele morna.

Conduziram-se, um ao outro, entre abraços e beijos. - Quem tinha tomado essa decisão? Não importava! - Enlevados em espirais deixaram-se arrastar um em torno do outro, em movimentos concêntricos que partiam de um mesmo desejo.

Mãos peregrinas numa caminhada, uma mesma demanda num corpo oposto. Ela tocava-o, ele tocava-a. Ela procurava Amor. Ele procurava Vida. Ambos procuravam no outro a fonte para saciar a sede que possuíam.

Ela esperava encontrá-la na origem da vida. Ele, na própria existência, na força vital que lhe percorria o corpo.

Despidos e despojados.

Ela procurava a semente, ele procurava o vaso. Ela encontrou-a. Ele encontrou-o. Ambos unidos num êxtase.

Ela encontrava o Amor enquanto perdia a vida. Ele adquiria vida enquanto dispensava Amor.

Unidos no Amor, de ambos fluíra Vida: Sangue e Sémen.

Psis II



Tenho grande respeito por psicólogos.

Eu próprio, em tempos que já lá vão, pensei em seguir esta via académica/profissional…

Bom, acima de tudo académica. Porque no que respeita à parte profissional, à semelhança de tantas outras, já dependeria de uma multiplicidade de factores e imprevistos que por vezes nos afastam da sua plena aplicação.

Por isso impõe-se a distinção entre psicólogos e licenciados em Psicologia. Uma distinção que muitos não me perdoariam se eu aqui não a fizesse e eu não quero afrontar o brio profissional.

“Só vai par a Psicologia a malta que tem problemas pessoais para resolver”, ouvi dizer diversas vezes (e a concordar, atendendo a alguns casos que conheço). É claro que não é um pensamento muito reconfortante. Eu que pensava que só ía para Psicologia quem queria ajudar os outros…

Como de sábios e loucos todos temos a nossa quota-parte, talvez haja aqui algum fundo de verdade. Não sei. (Deixo essa reflexão para outros, mais habilitados a fazê-la do que eu).

Enfim, acabei por optar por outra via. Assim foi, porque assim calhou. (Não sou assim tão paranóico).

Pronto! Creio que neste momento tenha psicólogos e licenciados em Psicologia a esfregar as mãos e a começar a tirar uma série de ilações acerca de frustrações, recalcamentos e mais meia-dúzia de termos. Também não os vou contrariar. Interpretem como quiserem.

Para os psicólogos, tudo se afigura passível de interpretação e nessas interpretações dos sinais vislumbram o indivíduo como um todo maior que a soma das suas partes. Diz que é a Gestalt, a forma, a configuração, a estrutura.
Tudo bem. Até concordo. Tudo pode ser interpretado. Significado e significante. Ideia e a forma. Abstracto e concreto. Símbolo e signo…

Mas apesar do fascínio que possa sentir, há coisas que me deixam desconcertado. Muito mais perplexo e confuso do que se estivesse a olhar para uma série de pranchas cheias de borrões de tinta onde é suposto vermos algo, ou não. Seja como for, será sempre alvo de uma interpretação! O que é ou pode ser, diga-se, extremamente irritante!

Quantas vezes os sentimos a devassar-nos com o olhar, atentos ao pestanejar, aos gestos, às pausas... Sempre a procurar e a encontrar significados em tudo e mais alguma coisa.

Irritante, sobretudo quando não o solicitámos.

Nesse caso, Agostinho da Silva tem alguma razão “A psicologia é uma ciência pela qual tive sempre a maior das desconfianças porque sempre me pareceu uma detestável e condenável intervenção na vida alheia, uma quebra do que existe de mais sagrado, a intimidade espiritual de cada um”.

Bom, não serei assim tão radical. Excluo desta afirmação aqueles que recorrem à terapia ou que voluntariamente expõem a sua intimidade.

Mas não deixa de ser pertinente esta reflexão.

Talvez nela resida a distinção entre psicólogos e licenciados em Psicologia: o primeiro utiliza as ferramentas em proveito do Outro. O segundo, não necessariamente.

Imaginem a vossa casa. Convidam alguém a entrar e pedem-lhe que vos ajude a arrumá-la. Ele pega nas suas ferramentas e técnicas de trabalho, faz o que lhe pediram (ou tenta o melhor que pode e sabe), e sai porta fora.

Agora imaginem alguém que, usando ferramentas e técnicas semelhantes, entra na vossa casa mas apenas para procurar algo e sai, ou que a deixa ainda mais desarrumada e sai.

Como aqueles canalizadores que para arranjar os canos, rebentam com as paredes, mas depois não as voltam a colocar.

Bom, deve ser por isso que inventaram a ética.

Por isso, vós - Oh psis -, tendes tanto de fascinante como de assustador.

Dizia um amigo meu que “só precisa de a psicólogos quem não tem amigos”. Afinal, muitos problemas resolvem-se numa amena cavaqueira com um bom amigo. Pode ser igualmente eficaz e muito melhor para a auto-estima, porque o amigo ouve, aconselha e no final não apresenta a conta. Fá-lo porque gosta de nós e sai bem mais barato!

Mas continuo a gostar de vocês!

Psis I



Há uns tempos prometi algo acerca de Psis. Ainda não é desta. Para já, fica só a piaducha.

Psicólogo não adoece, somatiza.
Psicólogo não transa, liberta libido.
Psicólogo não estuda, sublima.
Psicólogo não dá vexame, surta.
Psicólogo não fofoca, transfere.
Psicólogo não tem ideias, tem insights.
Psicólogo não resolve problemas, fecha gestalt.
Psicólogo não se engana, tem actos falhados.
Psicólogo não muda de interesse, altera figura e
fundo.
Psicólogo não fala, verbaliza.
Psicólogo não conversa, pontua.
Psicólogo não responde, devolve a pergunta.
Psicólogo não desabafa, tem catarse.
Psicólogo não pensa nisso, respira isso.
Psicólogo não é indiscreto, é espontâneo.
Psicólogo não é gente, é estado de espírito.

Menina com balão

Mr. Smith & Mr. Wesson


"Listen to them. Children of the night. What music they make."

(in, Dracula, Bram Stoker, 1931)

Mulher



"Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E por que não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Por que não seria a mulher o intermédio entre o céu e a terra?"

(in Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano, 1844)

Dormias

Dormias.

Os meus dedos abandonavam lentamente a tua pele, onde antes tinham sucumbido ao prazer táctil de uma carícia. Um momento de ternura que me inundou o olhar.
Olhava-te, quando percebi que a tua imagem se desfocava através de um véu translúcido e tremeluzente, tornando o teu contorno liquefeito, como uma pintura a aguarela.

Em que pensava? Não sei. Em nada mais, além daquele instante, creio eu.
Procurei a razão pela qual deslizava uma pequena gota de água no teu ombro, que me apressei a apanhar. Não a sentiste. Dormias.

Ali, tão perto, sentia-te tão longe. Ou talvez fosse eu quem se afastava, numa súbita sensação de solidão, enquanto deitava a cabeça na almofada, confidenciando-lhe um suspiro.

Dormias.

Ouvia a tua respiração grave e serena entrecortando o silêncio da noite. Nela embalei a minha e nela embalei sonhos de amanhecer. Um raiar que, naquele momento, não conseguia vislumbrar através da cortina opaca tingida de escuridão.

Dormias. Um sono solto. Num alheamento profundo.

Silêncio




Deixou de falar no dia em que concluiu que não tinha nada interessante para dizer.

Quando sentiu que o que dizia não era interessante de ser escutado.

Quando concluiu que o que adquirira o mesmo conteúdo fastidioso das conversas que tantas vezes ouvira, demonstrando um interesse e uma curiosidade que não sentia, apoiadas em forçados sorrisos de circunstância.

Quantas vezes, dera por si a repetir, até à exaustão, as mesmas histórias, os mesmos exemplos, obrigando aqueles que o ouviam a colocar um ar insípido ou falsamente espantado ou interessado, se não tivessem a coragem suficiente para concluir-lhe as frases ou (directamente), recordar que já lhes tinha contado aquela história, uma e outra e outra e outra vez.

Palrava. Verbalizava horas de conversa vazia.

(Constatações meteorológicas óbvias e previsões falíveis acerca da previsão do tempo para o dia seguinte, acompanhadas por explicações pouco-nada científicas, mal fundamentando o calor de Outono e o frio de Verão. O clima sempre fora, por excelência, o grande intróito à conversa, ramificando-se depois para outros temas.)

Já não tinha nada novo para dizer.

Na verdade, talvez sempre tivesse tido muito pouco para dizer, limitando-se a dar contornos diferentes ou a enquadrar o discurso numa moldura requintada.

Reinventava narrativas e personagens, episódios que não recordava onde tinha visto, nem sequer, se os tinha vivido ou se lhos tinham contado. Por vezes, acrescentava-lhes uma ou outra laracha, se a inspiração o propiciasse, arrancando uma ou outra gargalhada a interlocutores, que lhe reconheciam uma personalidade afável e bem disposta.

De quando em quando, descobria um novo acontecimento que incorporava como uma lufada de ar fresco, afastando por instantes o ar bafiento e saturado. Mas rapidamente, este se consumia, retomando a rarefacção de uma atmosfera irrespirável.

Por tudo isso, tomara aquela decisão, firmada num pacto de silêncio.

Agora, mesmo quando perante alguém, que não conhecia, nem ao seu discurso pré-fabricado (o que deveria deixar à vontade suficiente e oportunidade para colocar a cassete no início), abstinha-se e não sentia a mínima vontade de o fazer. Furtava-se à conversa.

Pouco a pouco, ía-se fechando em si. Interiorizando e dialogando consigo.

Procurava poupar os demais da sua verborreia.

Simultaneamente, tendia a escapar-se da deles e autorizava-se a deixar de ouvir o que não lhe apetecia. A não ter de falar se não o queria fazer. A não conhecer, nem dar-se a conhecer se não o desejava.

Já nem a curiosidade conduzia a essa busca, porque deixava de a sentir. Era-lhe indiferente.

Igualmente indiferente se agora lhe achariam piada ou não. Que lhe acusassem a falta de simpatia ou de sociabilidade. Não queria saber.

Já não queria saber.

Calava-se.

A Árvore da Vida




Ao meu grande amigo LF


Aquela manhã, como muitas outras manhãs.

Naquela manhã, como em muitas outras manhãs, pai e filha, percorriam o mesmo trajecto.

Ele, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, conduzia.

Ela, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, sentada no banco de trás, olhava pela janela um caminho que nunca era igual, recriado a cada viagem, como só uma criança consegue fazer.

Naquela manhã, ao contrário de todas as outras manhãs, impôs-se um desvio súbito.
Na rua, homens podavam árvores. Ramagens e troncos caídos no chão interpunham-se entre eles e o percurso habitual rumo à escola.

Para ele, a redefinição de trajecto, o imprevisto inoportuno, o contratempo, viagem contra o tempo.

Para ela, um acontecimento singular, uma interrogação, um agitar na cadeira e um avivar do olhar curioso. Olhos amendoados, cor de mel, adoçavam-lhe a visão do mundo. Olhos grandes, abertos à imensidão.

A novidade do nunca visto exigia as questões de quem deseja perceber, nem que seja para depois reinterpretar numa lógica muito própria.

- Pai, porque é que os senhores estão a cortar as árvores?! (Como era possível tamanha bizarria? Não saberiam os senhores que as árvores são um bem precioso?)

- Não estão a cortar as árvores, filha, estão a podá-las, para que depois cresçam mais fortes. – Esclareceu.

- Ah. Porque as árvores são muito importantes. Elas dão oxigénico! – Reforçou.

- Oxigénio. – Corrigiu.

- Pois. E sem oxigénico morremos. – Recordou.

- Sim filha. É verdade. Mas diz-se: Oxigénio. – Confirmou e voltou a corrigir.

Sim. Oxigénio…

Quedou-se em silêncio com a respiração suspensa em pensamentos soltos. Olhos fixos para lá da janela. Fixos e indiferentes à paisagem que passava ao lado do carro. Indiferente ao tempo, ao espaço, a desvios… Naquele momento, nada a desviava. Olhava para lá do visível, absorta num momento seu. E pensava em árvores. Árvores e ramos.

Pensava no aglomerado de folhas, tombadas na estrada, ainda agarradas aos ramos. Não mais se agitariam ao vento, nem trariam sombra… Aquelas árvores, como as outras árvores, que nos dão oxigénio deixavam, elas próprias, de respirar. Árvores que são vida, que nos dão vida e que agora morriam e com elas morria a vida. E teve pena delas. E daqueles que seriam privados do seu oxigénico.

O pai, de soslaio olhava-a através do espelho retrovisor. Estranhava-lhe o silêncio súbito. Intrigava-o. Interrogava-se acerca do que estaria ela a pensar. Ela, a sua filha. E deu consigo a pensar em árvores. Árvores e frutos.

Uma árvore que tinha um fruto, belo e doce, ainda preso a si. O fruto que era vida, fruto da vida, e que era a vida da árvore. E a árvore amava-o e protegia-o entre a folhagem. E sentiu alegria. E esse era o seu oxigénio.

Subitamente,

- Pai. Já sei porque morreu a avó! Morreu porque cortaram a árvore dela!

E aquelas palavras…

Palavras a interromper o silêncio. Palavras a adensar o silêncio. Palavras a embargar palavras. Palavras a convocar lágrimas. Palavras a invocar as raízes que nos definem, que nos sustentam, que nos alimentam.

Numa simplicidade poética foi expressa toda a metafísica. A essência de uma árvore contida numa semente.

Palavras que ficaram a ecoar num momento muito especial, daqueles que nos marcam e nos fazem "ganhar" o dia.

Palavras a dispensar palavras.

Naquela manhã. Pai e filha. Árvore e fruto. Árvore genealógica. Ramificavam reflexões, a partir de uma ramificação no percurso. Obstáculos imprevistos que conduziram a um caminho, a derivar para outros caminhos. Ramificações a partir de um tronco comum.

Naquela manhã, entre tantas outras manhãs, viveu-se uma alegoria da vida.

Naquela manhã, celebrou-se a Árvore da Vida.