
Ao meu grande amigo LF
Aquela manhã, como muitas outras manhãs.
Naquela manhã, como em muitas outras manhãs, pai e filha, percorriam o mesmo trajecto.
Ele, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, conduzia.
Ela, naquela manhã, como em muitas outras manhãs, sentada no banco de trás, olhava pela janela um caminho que nunca era igual, recriado a cada viagem, como só uma criança consegue fazer.
Naquela manhã, ao contrário de todas as outras manhãs, impôs-se um desvio súbito.
Na rua, homens podavam árvores. Ramagens e troncos caídos no chão interpunham-se entre eles e o percurso habitual rumo à escola.
Para ele, a redefinição de trajecto, o imprevisto inoportuno, o contratempo, viagem contra o tempo.
Para ela, um acontecimento singular, uma interrogação, um agitar na cadeira e um avivar do olhar curioso. Olhos amendoados, cor de mel, adoçavam-lhe a visão do mundo. Olhos grandes, abertos à imensidão.
A novidade do nunca visto exigia as questões de quem deseja perceber, nem que seja para depois reinterpretar numa lógica muito própria.
- Pai, porque é que os senhores estão a cortar as árvores?! (Como era possível tamanha bizarria? Não saberiam os senhores que as árvores são um bem precioso?)
- Não estão a cortar as árvores, filha, estão a podá-las, para que depois cresçam mais fortes. – Esclareceu.
- Ah. Porque as árvores são muito importantes. Elas dão oxigénico! – Reforçou.
- Oxigénio. – Corrigiu.
- Pois. E sem oxigénico morremos. – Recordou.
- Sim filha. É verdade. Mas diz-se: Oxigénio. – Confirmou e voltou a corrigir.
Sim. Oxigénio…
Quedou-se em silêncio com a respiração suspensa em pensamentos soltos. Olhos fixos para lá da janela. Fixos e indiferentes à paisagem que passava ao lado do carro. Indiferente ao tempo, ao espaço, a desvios… Naquele momento, nada a desviava. Olhava para lá do visível, absorta num momento seu. E pensava em árvores. Árvores e ramos.
Pensava no aglomerado de folhas, tombadas na estrada, ainda agarradas aos ramos. Não mais se agitariam ao vento, nem trariam sombra… Aquelas árvores, como as outras árvores, que nos dão oxigénio deixavam, elas próprias, de respirar. Árvores que são vida, que nos dão vida e que agora morriam e com elas morria a vida. E teve pena delas. E daqueles que seriam privados do seu oxigénico.
O pai, de soslaio olhava-a através do espelho retrovisor. Estranhava-lhe o silêncio súbito. Intrigava-o. Interrogava-se acerca do que estaria ela a pensar. Ela, a sua filha. E deu consigo a pensar em árvores. Árvores e frutos.
Uma árvore que tinha um fruto, belo e doce, ainda preso a si. O fruto que era vida, fruto da vida, e que era a vida da árvore. E a árvore amava-o e protegia-o entre a folhagem. E sentiu alegria. E esse era o seu oxigénio.
Subitamente,
- Pai. Já sei porque morreu a avó! Morreu porque cortaram a árvore dela!
E aquelas palavras…
Palavras a interromper o silêncio. Palavras a adensar o silêncio. Palavras a embargar palavras. Palavras a convocar lágrimas. Palavras a invocar as raízes que nos definem, que nos sustentam, que nos alimentam.
Numa simplicidade poética foi expressa toda a metafísica. A essência de uma árvore contida numa semente.
Palavras que ficaram a ecoar num momento muito especial, daqueles que nos marcam e nos fazem "ganhar" o dia.
Palavras a dispensar palavras.
Naquela manhã. Pai e filha. Árvore e fruto. Árvore genealógica. Ramificavam reflexões, a partir de uma ramificação no percurso. Obstáculos imprevistos que conduziram a um caminho, a derivar para outros caminhos. Ramificações a partir de um tronco comum.
Naquela manhã, entre tantas outras manhãs, viveu-se uma alegoria da vida.
Naquela manhã, celebrou-se a Árvore da Vida.
São estes momentos únicos que nos ajudam a compreender a verdadeira essência de sermos pais... mais que um direito, uma dádiva. :) Abraço e obrigado. LF
ResponderEliminarBem dizia/escrevia o Poeta que o melhor do mundo são as crianças...
ResponderEliminarQue nos surpreendem com a sua filosofia e nos obrigam a desarrumar o que já estava arrumado. Que acreditam nas criaturas mágicas, mas que as enfrentam olhos nos olhos, lanterna na mão. Que nos questionam uma e outra vez sobre o mesmo assunto, a testar a nossa ética, a nossa entrega incondicional.
Verdadeiras musas, como se pode ver neste post (dos que mais gostei de ler).
E por isso (e por outras coisas) vou continuar na minha senda... Lobitos ao Poder!!! I only say this once... ;)