Penso Que Penso

"Caminho em silêncio
Distraído por um pensar
Que me turba o andar
Penso que penso
E fico a ouvir-me a pensar
Que penso que penso
Este pensamento
Torna-se um tormento
Penso que penso
Que penso que penso
Sempre o mesmo a dobrar
Como vozes a segredar
Penso que penso
Que penso que penso
Que ainda vou flipar
Flipar

ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM

Já não posso mais andar
Com tanta voz a murmurar
Levado pelo vento
Penso que penso
Que penso que penso
Que penso que penso
E se penso em parar
É mais um pensamento
Que me fica a ecoar
Outra voz a segredar
Outra voz a murmurar
Murmurar...

Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar
Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar

ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM"

(Mão Morta)

Corre.




Corre.
Corre na direcção oposta.
Corre. Corre. Corre. Não pares!
Não penses! Limita-te a correr,
Até sentires os pulmões em fogo. Corre.
Até os tendões gritarem. Corre.
Até seres apenas um vulto. Corre.
Até seres um ponto perdido no horizonte. Corre.

Deixa tudo para trás. Corre, por Deus, corre!!!
Esquece-te de ti mesmo e corre.

Corre até à exaustão.
Corre até seres apenas suor e dor.
Suor, que lava lágrimas de dor,
Dor, expelida num grito,
Grito, que sai do peito,
Peito, onde o coração rebenta de dor,
Dor, que se sobrepõe à dor. Corre!

Esquece o cansaço que te pesa.
(Inspira)

Cospe a raiva.
(Expira)

Foge da multidão. Corre.
(Inspira)

Foge do impossível. Corre.
(Expira)

Foge de ti.
(Expia)

Discos Perdidos - Elephant Gun

Carta

Querida Madrinha de Guerra,

Espero que estas linhas a encontrem de boa saúde.

Por aqui, continuo a minha Comissão.

Sinto-me tão cansado, Madrinha. Sinto que cedo ante a exaustão causada por este permanente estado de vigilância a que me obrigo.

Por vezes, já nem sei se o inimigo é real, ou se é o medo que mo faz ver nos momentos mais incríveis. Mesmo fechando os olhos, vejo-o. Sinto a sua presença em toda a parte. Estou tão cansado e não consigo dormir. Aliás, temo adormecer. Temo que se o fizer não volte a acordar ou, acordando, ser demasiado tarde para escapar. Receio não conseguir assegurar o meu posto, deixando-o cair em mãos inimigas.

Resisto a morteiros e obuses. Tenho a metralha gravada nos ouvidos...

(Está um calor sufocante. Custa-me respirar.)
Este constante estado de ansiedade é, para mim, a angustiante realidade dos dias que passo neste campo de batalha, onde me sinto só. Só e demasiado fraco, nos limites da resistência que não sabia ter, nem que as minhas forças abarcavam. E todos os dias são um teste constante. Cada saída pelas picadas é um percurso eterno. O coração palpita de tal modo que quase o consigo ouvir.

Alegremente me apartava desta agonia e a dispensava.

Sempre fui uma pessoa de bem, Madrinha. Mas aqui, aqui neste Inferno, várias vezes dou comigo transido pela fúria e pela raiva. Há momentos em que não me reconheço. Ainda ontem, quando fazia a barba, num momento em que a manhã estava calma, olhei o pequeno espelho de bolso, apoiado num ramo e não reconheci o reflexo que ele me devolvia.

Mas falemos de coisas mais agradáveis.

Querida Madrinha, como corre a vida na Metrópole?

Recordo as tardes no jardim da praça. Suponho que o jardim esteja lindo e florido, como sempre costumava estar nesta altura do ano. O que eu dava por um copo de capilé fresco, enquanto lia o jornal na esplanada.

Aqui também há flores e árvores. Mas são diferentes. Mais assustadoras, ainda que igualmente belas e viçosas. É a selva. Gostava, um dia, trazê-la cá Madrinha. Mas numa altura em que a pudesse ver com outros olhos.

Agora me despeço. Obrigado por me ler nestas linhas e acolher os meus lamentos no seu regaço.

Ficarei a aguardar novas. Logo que possa, lhe escreverei, Deus me dê forças para o fazer.

Cumprimentos

A Resposta

Tenho oitenta anos. Estou velho.

Por vezes acho que perfiz esta idade há muitos anos atrás. Como se tivesse tido apenas duas idades: criança e velho. Mas não é sobre isso que aqui irei escrever. (Perdoem estes desvarios).

Escrevo e enquanto o faço, fito as minhas mãos. Mãos com que ainda agarro languidamente a vida. Vida que teima em escapar-se por entre os dedos, semelhantes a raízes retorcidas. Âncoras carcomidas, fundeadas num porto antigo.

Olho a folha de papel. Ah! Olhos cansados que adormecem cada vez mais cedo! Pálpebras que se assemelham a cobertores pesados. Tapando-os. Fechando-os.

O sono da idade cai sobre mim.

Tenho o rosto sulcado pelas linhas do tempo. Linhas que cosem memórias de um tempo em que não as tinha. Linhas que me prendem a um tempo que já não tenho.

Memórias e recordações. Algumas irremediavelmente perdidas. Outras inesquecíveis. Alegrias e tristezas convivendo lado a lado formando um misto paradoxal de querer recordar e esquecer, de reviver e de nunca o ter vivido.

Uma vez mais, peço perdão pela facilidade com que me afasto para lá do objectivo inicial, do propósito, trocando-o por divagações entorpecidas, despertas nestas palavras.

Escrevo para responder a uma questão. Uma pergunta tão simples, formulada há quarenta e cinco anos atrás.

Certa noite, quando me que me preparava para dormir, foi-me colocado um desafio: “que momento comigo recordarás aos oitenta anos”?

Uma simples pergunta. E tive de esperar quarenta e cinco anos para lhe responder. Quarenta e cinco anos e muitos momentos. Mais que o único que me foi pedido.
Elejo dois: Um. Final de tarde na praia. O poncho de lã colorida. Sentados na areia. O vento frio. A procura do calor dum corpo no outro corpo num abraço apertado. Amanhecia naquele entardecer.

Dois. Negro e Vermelho. Uma dança. Um leque sustentando a sedução num olhar. Rendição e excitação noutro. Olhos fatais. Mãos fatais. Mãos esvoaçando como pombas. Uma actuação no palco da Paixão.

Oitenta anos e sento-me entre torvelinhos de areia, com a cabeça baixa e fecho os olhos para a evitar. Fecho os olhos e vejo.

Oitenta anos e sou espectador. Abro os olhos e fico suspenso naquele rodopiar. O olhar fatal. Esquerdo. Direito. Remate.

Paradoxos



Paradoxo I.
Há aqueles que, dormindo, têm pesadelos.
Há aqueles que, dormindo, procuram fugir deles.

Paradoxo II.
Muitas vezes aquilo que mais desejamos é, simultaneamente, aquilo que mais tememos.

Paradoxo III.
Aquilo que nos fortalece, também pode ser aquilo que nos destrói.

Constelações Infinitas

Com os dedos traçava-lhe linhas imaginárias na pele macia, unindo os seus inúmeros sinais, desenhando constelações infinitas.

Perdia-se naquele planetário, como um astrónomo embevecido na contemplação dos astros.

Descobria corpos celestes naquele corpo em repouso.

Perdia-se em viagens voluptuosas, atraído pela força do seu campo magnético, gravitando na sua órbita em movimentos perpétuos, inebriado pela inefabilidade das sensações despertas em si.

Em cada constelação traçada, procurava os desígnios que o Destino lhes reservava. Procurava-os naquele imenso mapa astral onde dois signos se uniam. Procurava o ponto vernal e o sentido das coisas. Procurava sinais naqueles sinais.

Fazia deslizar os dedos ao abandono cálido das linhas curvas, orientando-se em coordenadas de latitude e longitude espacio-corporal, seguidos atentamente por um olhar minucioso, ávido e nunca saciado. Como se procurasse memorizar cada pista, cada trilho, captando cada imagem numa fotografia mental, gravando-a fundo na retina. Olhava intensamente, como se fosse a última vez que o fazia. Como se cada momento fosse o último e quisesse guardá-lo para sempre, imortalizando-o.

Cosmonauta numa viagem de retornos eternos a um ponto, sinal de partida para uma nova descoberta.

Impelido pela força dos sentidos e dos sentimentos, perscrutava os recantos infinitos daquele Universo desconhecido, sabendo que nunca o chegaria a conhecer na sua totalidade.

A Ceifeira

Caminhava, com a calma compassada nos passos furtivos.

À sua frente estendia-se a vastidão do campo semeado. Olhou-o com a complacência compadecida da inevitabilidade.

Aproximou-se devagarinho. Invisível. A atmosfera opaca abafava o som dos seus passos.

O vento suspenso. O ar irrespirável.

Uma atmosfera morta na serenidade densa que antecede a tormenta.

Subitamente, anuncia a sua chegada, irrompendo com a fúria da tempestade e num gesto súbito, num único gesto, com uma brevidade fria e metálica, suspende aquele momento pela Eternidade.

Num único roçar de foice, rápido e mortal, sega sonhos de plantio.

Demasiado rápido para que fosse percebido.

Demasiado letal para lhe sobreviver.

Silêncio.

A Ceifeira afasta-se com a calma compassada nos passos. Caminha lenta e invisível.

Atrás de si, a vastidão despojada jaz em pousio.

Uma brisa desperta, aturdida, e interrompe aquele estupor.

Uma semente perdida rodopia no ar.

Algures no Tempo

Um momento perdido algures no tempo.

Aqueles momentos que não conseguimos situar. Apenas sabemos a sua existência, porque os vivemos, guardando deles apenas uma ténue memória.

Apartei-me dela num momento assim. Um momento que não recordo.

Talvez a tenha arrumado, distraidamente, numa qualquer caixa de brinquedos. Empacotada com os sonhos que coloriam os meus dias de infância. Recordo-a nesses tempos, quando o sol de Verão brilhava todo o ano, iluminando os dias.

Brincadeiras decalcadas da imaginação de quem descobre o Mundo ao seu redor, olhando-o com a inocente transparência da simplicidade.

Talvez a tenha arrumado mais tarde, numa gaveta, entre cartas e esperanças, bilhetes de concertos e de viagens realizadas ou por realizar. Quinquilharia diversa. Tesouros que apenas têm valor para quem conhece o seu significado, nada valendo para os demais que não vêem além daquilo que, na realidade, não deixa de ser.

Também a recordo nesses tempos. Ainda que, por vezes, me fosse fugidia ou fosse apenas eu que lhe fugia. Como se estivéssemos num jogo de gato e rato. Mas acabávamos por nos entender e, mais cedo ou mais tarde, um encontrava o outro. Em cada reencontro abraçava-a com os olhos brilhantes, deixavando-me conduzir pela sua mão.

Idade do querer e do não querer, ou não saber o que se quer. Do ser e do não ser, nem saber sequer o que se quer ser. Quando tudo se questiona e tudo se põe em causa. Quando a vida é um turbilhão de invernos, seguido pela ligeireza primaveril que nos encanta as manhãs e se prolonga até à noite.

Por achar que a teria sempre comigo, que acabaria sempre por me encontrar quando dela me escondesse ou que a encontraria eu quando a procurasse, não dei demasiada importância aos momentos em que não a sentia.

Ilusória sensação.

Houve um dia que estranhei o seu sumiço. O facto de não me ter vindo descobrir e a dificuldade em encontrá-la. Tinha-a perdido? Onde? Terei notado demasiado tarde? Talvez.

Abri caixas e sacos. Remexi velhos baús. Vasculhei papéis… nada! Abri gavetas e reabri envelopes cobertos de pó… nada!

Desde então que procuro a sua fórmula (como se houvesse fórmula!) ou o mapa que me há-de conduzir aos seu esconderijo. Grito aos sete ventos, chamando-a e assinalando a minha presença a cada chamado, para que também ela possa vir até mim, se for caso disso (espero que assim seja).

Hoje, tal como ontem, interrogo-me se não terei sido eu que lhe fugi. Se não lhe terei fechado a porta, deixando-a do lado de lá.

Escrito por: Sphynx

Reflexos

Saio de mim, para escrever o meu outro,
Porque sendo este, também sou aquele.
Porque sendo todos, não sou nenhum.
Olho os fragmentos de espelho que me reflectem,
Cortantes estilhaços do Ser,
Reflexos das mil faces que são uma,
Captada em ângulos diversos,
Que separados se completam,
E em mil pedaços me revelam,
Sem nunca me revelar.

Escrito por: James Starfield