Nómadas

Não sabiam de onde vinham. Mas sabiam quem eram.

Desde que se recordavam, sempre tinha existido.

Desde que se recordavam, o mundo era a sua casa, mas a sua morada não residia em parte alguma. Empurravam-na consigo pelas paragens do Destino. Pelas paragens, onde paravam mas não permaneciam. Empurrados ao sabor do vento, movidos por um desejo de Liberdade ou, simplesmente, pelas vontades daqueles que não os deixavam ficar.

Foi assim que conheceram as planícies. Atravessaram cordilheiras. Desceram aos mais profundos vales. Subiram às altas montanhas e aproximaram-se dos céus. O mesmo céu companheiro que lhes dava cobertura. Dia após dia. Noite após noite. O céu por cima de si. Os trilhos vincados deixado atrás de si. Marcas deixadas pela roda da Fortuna. Marcas de quem vive no improviso dos dias não planeados. De quem vive ao sabor da corrente dos rios onde se banham as crianças, enquanto as mães lavam o pó da estrada das roupas, que ainda deixam adivinhar as cores vivas que um dia tiveram.

Quando se detinham em alguma parte, faziam desse local transitório a casa que não chegava a ser, a pátria que não chegaria a ser. A sua pátria é maior do que qualquer fronteira geográfica e temporal. A sua pátria é em toda a parte e em parte alguma. E por isso se sentem sem ela e a sentem a cada instante, porque ela é onde eles estão e onde estão aqueles que amam.

As noites iluminadas pelo luar, aquecidas pela fogueira e animadas pela música. Entrançadas nos seus acordes, cantam-se as histórias de quem não escreve, mas que transporta consigo todo o seu povo. Cantavam e dançavam. Aplaudiam a vida na sua dupla face, Alegria e da Tristeza. Palmas que marcavam o ritmo da vida. Que incitavam à sua dança perpétua.

Essa era a sua força. Não sabiam de onde vinham. Mas sabiam quem eram e de tudo faziam para nunca o esquecer. Porque sempre tinham existido e sabiam que iriam existir para sempre. Enquanto houvesse um céu sobre si e uma estrada a percorrer.

Escrito por: James Starfield

Um desejo de Voar

Os carros passavam, pequenos e velozes, como formigas que se dirigem atarefadas para o formigueiro, percorrendo trilhos de asfalto.

As copas das árvores assemelhavam-se a frondosos manjericos, como aqueles que perfumam as festas dos Santos Populares, mesclando-se com o odor das sardinhas assadas e com o alarido das alegres multidões que dançam ao som da música de baile.
As roupas nos estendais eram bandeiras multicolores sacudidas pelo vento, e os estendais, um emaranhado de teias de aço.

Dali conseguia perceber os rios como finas veias azuis que serpenteavam entre margens, levando a vida correndo dentro de si.

Só o mar permanecia imenso. O mar é imenso, independentemente do ângulo que escolhemos para o olhar. Imenso e eterno. O mar é o imenso e eterno espelho do céu.
Dali, tudo lhe parecia mais belo. Distante e belo. Como se a beleza só pudesse ser percebida a partir daquele ponto de vista. (Engraçado! Estando no meio das coisas, muitas vezes, não nos apercebemos delas).

À sua frente, as janelas deixavam transparecer vidas que decorriam alheias. Quem seriam aquelas pessoas? Que estariam a fazer? Seriam felizes?
Esboçou um sorriso e esperou que assim fosse. Não os conhecia, mas desejava-lhes a Felicidade. E quis dizer-lhes quão belo era o Mundo.

A uma das janelas assomou-se uma criança e acenou-lhe. Respondeu ao aceno com um olhar de ternura. Por instantes, o olhar de um ficou preso no do outro. E ambos sorriram. Um sorriso de alegria, respondido com um sorriso de nostalgia. Disse Adeus à criança que um dia fora. Quando passava as tardes soalheiras de Verão a brincar na rua a engendrar estratégias de ataque contra as investidas dos índios que atacavam a caravana. Ou a fazer bolinhos de lama, servidos com um chá imaginário, no imaginário que era a casinha. Também podia ser a tentar acertar com os berlindes nas três covinhas escavadas com o calcanhar girando sobre si mesmo. Ou, ainda, a empurrar carrinhos entre pistas alisadas na terra. Ou a saltar ao elástico, ao ritmo das cantilenas, por vezes sem sentido, que não o sentido de aproveitar as tardes soalheiras.

Mas agora sentia apenas um profundo desejo de voar, de elevar-se para lá das nuvens, para lá do Mundo. Abriu os braços e abraçou-o num breve instante.

Escrito por: Sphynx

Receita de Bacalhau

Respondendo a um pedido recorrente, aqui deixo uma receita que tem como protagonista: o Bacalhau!

Pegue-se numas postas demolhadas. Botam-se as mesmas desfiadas numa trabessa e rega-se com azeite.

Depois corta-se cebola às rodelas e bota-se a mesma por cima do bacalhau.

Entretando já temos umas batatinhas descascadas que se ajeitam ao redor da trabessa, cortadas às rodelas.

Batem-se dois obos e espalhasse por cima.

Bai ao forno e deicha-se cozer.

Quem gostar pode acompanhar com esparregado.

Bom apetite

Escrito por: Chef Gomes de Sá

Meditações sobre Cegonhas

Considerava-me razoavelmente preparada para os desafios da maternidade, consequência de ser a mais velha de uma extensa geração de primos e primas. Mudar fraldas, pôr bebés a arrotar, cantarolar o cancioneiro infantil, fazer papas Cerelac, negociar birras, não apresentavam grandes mistérios para mim.

E assim aconteceu. Os primeiros anos correram sem sobressaltos, a desembaraçar-me nas grandes tarefas maternas, a improvisar nos primeiros desassossegos. Entrámos na idade dos porquês. À cautela, a precaver o futuro, tinha observado cuidadosamente as perguntas dos petizes e as estratégias dos pais. Tinha rido deliciada com as aflições de uns e outros. Estava preparada, portanto.

Rapidamente percebi que explicar a origem dos bebés seria o menor dos meus problemas, e nem sequer tive de me socorrer do velhinho expediente da cegonha. Nas primeiras inquirições sobre o assunto, coloquei o meu ar professoral, e entre conceitos da biologia e histórias de príncipes e princesas, a coisa deu-se. Fui premiada com um espontâneo e desconcertante – “Que nojo!!!”, e uma providencial mudança de assunto. Tinha-me safo! Por ora…

As primeiras gotas de suor que me escorreram pela testa surgiram com as birras por um brinquedo novo. À tradicional resposta de “não tenho dinheiro”, a solução rápida e despachada: “- Vai ao Multibanco que ele dá-te as notas!”. E a explicação intricada sobre noções básicas de economia impôs-se. Mas se o Banco é nosso, como dizem na televisão, é só ir lá dentro e pedir as notas, argumentava ela. Pois, mas os bancos ficam com nosso dinheiro para que o apliquem em nosso benefício, porque assim ganha juros, dizia eu. (Eu! A quem ensinaram sempre que não se deve mentir às crianças…) E o debate académico sobre o funcionamento do nosso sistema fiscal prosseguia, terminando não raras vezes com a compra do almejado brinquedo…

A História de um país deve ser contada às gerações vindouras, por razões de cultura geral, mas sobretudo para que os erros do passado não se repitam. Segura desta minha convicção, abracei a hercúlea tarefa de explicar a Ditadura e a Revolução. Quando dei por mim, dissertava histórias de ogres e fadas, polarizando a nossa História recente, num relato que se traduziu em noites mal dormidas, com pesadelos – ela – e insónias – eu. Entre prisões políticas e cravos em espingardas, as descrições minuciosas sobre a cadeira do Salazar (teria espaldar? estava partida? e porque se lembrou ele de subir à cadeira?) e a confirmação quase sob juramento, uma e outra vez, de que está efectivamente morto. E a grande questão colocou-se: as pessoas não podiam falar porque o Salazar lhes punha fita-cola na boca?

Ainda imbuída deste espírito, tenho levado a minha filha comigo a todos os actos eleitorais, momentos que aproveito para uma introdução aos princípios elementares da participação cidadã em democracia. Na primeira vez, à saída da urna de voto, correu entusiasmada para a avó, aos gritos e apontando para as listas afixadas no recinto: “- A mãe votou naquele!!!” E como explicar que um acto com consequências tão importantes na nossa vida tem de permanecer secreto? Nos esclarecimentos sobre o “que é isso do Governo” também não fui feliz. Declarou-se, peremptória, contra toda e qualquer instância que cometa o atrevimento de lhe dar orientações, gerais ou específicas, porque “nela ninguém manda!”. E no final da cátedra, a tese.

Apresentada em toda a sua simplicidade axiomática, como só as crianças o conseguem fazer: “Votar é como as rifas.”

Escrito por: Mafalda

Morreste de Madrugada

Morreste de madrugada,
Entre poesia e prosa,
Com a alma abraçada
Aos espinhos de uma rosa.

E essa rubra flor
Enebriou-te com o seu perfume.
(Tão doce, tão suave aquele odor!)
Adormeceste a imensa a dor,
Morrendo sem um queixume.

Escrito por: Sphynx

Reencontro

O vento agitava as copas das árvores, despojando-as das poucas folhas que ainda resistiam ao crepúsculo outonal. Uma após outra, que se lhe juntava, iam aglomerando-se num leito castanho que atapetava o solo empapado pela chuva e pelo orvalho.

Chegara cedo, acompanhada pelos primeiros raios de sol, tímidos, encobertos, frágeis… Deteve-se por instantes ante o portão de ferro, aberto, fixo ao velho muro de pedra coberto de musgo. Dirigiu o seu olhar para vereda que se que se estendia à sua frente, ladeada por ciprestes, antes de iniciar a sua marcha processional.
E o vento soprou um bafo gélido.

Trazia um manto de veludo com o capuz sobre a cabeça que a cobria de negro e a tornava numa visão espectral.

O seu percurso era acompanhado por estátuas de pedra que vertiam lágrimas. Algumas, prostradas, num desfalecimento de dor sobre lajes frias e esquecidas entre a vegetação densa. Figuras ajoelhadas em pranto. Anjos que erguiam as asas aos céus e os apontavam, sugerindo um caminho para uma salvação que talvez fosse demasiado tarde para alcançar.

Todos eles, mais do que guardar alguém ou para além de lamentar, estavam ali para lembrar aos que passavam: Siste Viator! - Aspice Viator! (Detém-te Viajante - Olha Viajante).

E o vento era um lamento murmurado por entre as árvores.

Chegava ao final do seu caminho, junto a uma laje de mármore, despida, sobre a qual jazia unicamente uma pequena jarra de alabastro onde depositou delicadamente uma rosa, que segurava entre os dedos finos. E esse gesto revelou um braço alvo e uma pele suave e marfinosa. Em seguida, levou as mãos ao capuz e puxando delicadamente para as costas, revelou uns longos cabelos negros, que o vento se apressou a acariciar. E duas lagoas profundas de onde transbordaram lágrimas de saudade, descrevendo o contorno do rosto, deixando atrás de si um sulco bem menos profundo que o provocado pelo desgosto atroz que lhe tinha desfigurado o coração.
E o vento sussurrou uma elegia que falava de duas almas separadas na Sorte.

Olhou o céu cinzento, procurando o caminho da salvação de uma alma que ela desejava salva e a quem ansiava reunir-se na Eternidade. Que nunca mais a Senhora Negra a voltasse a apartar daqueles braços que um dia a haviam confortado. E recordando, ajoelhou-se num pranto mudo e sufocante, e apoiou a fronte na pedra fria, imaginando-a naquela onde tanta vez a tinha encostado com doçura. Depois beijou-a, colando-lhe os seus lábios carmesim, invocando em si doçura e o calor que agora não encontrava.

Quando de repente, num gesto súbito, a ferro frio traçou a linha do seu próprio destino, tomando-o no pulso.

E ficou ali, prostrada sobre aquele esquife de dor e saudade, decidida a unir-se a quem desejava que terra fosse leve. Petrificada naquele abraço, confundia-se com as demais imagens inertes que velavam os seus.

E o vento gritou… e depois…tornou-se uma brisa…

Escrito por: Nephilim

Na sala do fundo

Estavam reunidos na sala do fundo. Naquela noite, como em muitas outras, conversavam ao sabor de um café, envoltos pela névoa que se desprendia dos cigarros e que, lentamente, se esfumavam em conversas banais que acabavam por nunca o ser. Revestidas de duplos sentidos e interpretações subtis. Avaliavam cada palavra, cada gesto, cada silêncio, cada olhar. Os temas eram variados, mas nunca totalmente inocentes.

Eu tinha oito anos. Uma criança curiosa. Interrogava-me sobre o porquê das coisas. Buscava a causa das coisas, visíveis e invisíveis. Aquelas que se dizem existir, mas que nunca ninguém vê ou sabe explicar. Que muitas vezes nos chegam como “Ouvi dizer” ou “fulano contou-me que”.

Esse carácter oculto e misterioso do que não vemos ou nos é vedado, sobretudo quando não temos uma década de existência e centenas de perguntas, era suficiente para aumentar o fascínio e fazer-me tomar atenção. Atentar às conversas encriptadas dos adultos, num esforço de tornar imperceptível o significado do seu discurso. Aprendi a desconfiar.

Ouviam-se vozes, vindas da sala do fundo. A noite estava amena. Da janela do meu quarto via o céu e as estrelas tremeluzentes. Um pontilhado argênteo que eu unia para construir múltiplos desenhos. Não conseguia dormir. A minha atenção estava no som das vozes.

Levantei-me. Peguei no urso de peluche e saí do quarto.

Ao fundo do corredor, a porta entreaberta rasgava a escuridão com uma linha de luz. Encaminhei-me para aquele farol, apertando a mão do meu companheiro naquela incursão nocturna. Clandestina.

Caminhei com as pernas trémulas, movidas pelo ímpeto da curiosa vontade, em passos hesitantes. Querer escutar e temer ouvir. Às vezes os adultos ocupavam o tempo com conversas medonhas. Também me interrogava porque o faziam.

Estes serões tinham-me sido interditos, porque em alguns momentos, em que se falava de bandidos ou outras coisas ruins (como lhe chamava), ficava com medo do escuro e com medo de ir para a cama. E nessas alturas, avançava de interruptor em interruptor, até chegar à minha fortaleza. Debaixo dos lençóis estava a salvo. Com a cabeça tapada ninguém me via e assim a minha presença era despercebida.
Continuei a avançar. O corredor tornara-se mais longo e o tapete que o percorria tinha adquirido o dobro do comprimento.

As vozes tornavam-se mais nítidas.

Finalmente. Quem olhasse agora, do extremo oposto, veria uma linha de luz entrecortada por um vulto que a interrompia. Ajoelhado, com o urso de peluche unidos num abraço, espreitando.

Conversavam na sala do fundo, ao sabor de um café, envoltos na névoa que se desprendia dos cigarros, sentados nas velhas poltronas encovadas, marcadas por muitos outros serões.

“-Vou contar-te uma história de fantasmas!” – disparou à queima-roupa, aproveitando um breve momento de silêncio.

A resposta veio sob a forma de um breve anuir de cabeça, acompanhado por um sorriso nervoso. Arrisquei a adivinhar-lhe um agitar dentro do peito, evidenciado pela forma como se ajeitou na poltrona. Como se estivesse a amarrar-se ao mastro do navio antes da tormenta que parecia intuir.

Eu também me preparei para a força do desconhecido. Para o salto no vazio. Apertei mais o meu urso de peluche contra o peito. Creio que quase o sufoquei. Procurei nele a força necessária e disse para comigo: “Os fantasmas não existem”.
“Os fantasmas não existem” – pensou, procurando convencer-se daquela verdade e procurou convencer-se naquela afirmação.

Iniciou a narrativa fantasmagórica. Um, após outro foram invocados espíritos. Acordados do limbo em que se encontravam e trazidos à sua presença.
O ar tornava-se menos respirável. Tenso.

Senti um arrepio que me percorreu o corpo e me provocou um estremecer desconfortável. Pareceu-me ver o fumo dos cigarros tomar forma. Ou era uma forma que se materializava entre o fumo, sendo ela própria uma neblina densa. E pareceu-me ver emergir das paredes, erguendo-se do chão, descendo do tecto espectros que pairavam sobre as suas cabeças, entre eles. E não conseguia desviar o olhar, nem conter a estupefacção.

Eram demónios vindos do Inferno?

Um deles virou-se para mim. Olhou-me com as órbitas vazias e negras. Lançou um grito. E eu franzi os olhos com força e comprimi as palmas das mãos contra os ouvidos. Era ensurdecedor. Ainda que inaudível.

Parou. Silêncio. Abri os olhos. Tinha desaparecido ou pelo menos eu não o via. Mas logo veio outro.

Um, após outro foram invocados. Um, após outro, repelidos. Procurávamos repeli-los. Tanto quanto nos permitiam as forças.
Tal como náufragos que se debatem com as ondas sucessivas que, impiedosas, os assolam uma, após outra, esgotando as forças. Exaustos, acabam por sucumbir. Tragados pela inevitabilidade, são arrastados para o abismo.

O olhar vago. Rendido.

Penderam-lhe os braços, nos braços da poltrona. Olhou na direcção da porta e os seus olhos encontraram os meus. Não disse nada. Limitou-se a olhar-me e ambos nos reconhecemos naquele momento. Éramos um. À porta. Na sala do fundo.

A sua alma tinha sido possuída mas não exorcizada. Como quando se planta uma semente ruim que se deixa germinar e transformar numa planta venenosa.

A partir daquela noite nunca mais fui à sala do fundo.

Parte de si ainda lá está.

Escrito por: Sphynx

Hoje

Hoje acordei cedo para ir trabalhar. Bocejei. Um bocejo largo. Distendi os membros torpes, abraçando a manhã.
Hoje olhei-a com ternura enquanto ela dormia. Tranquila. Linda. Com a cabeça apoiada na almofada. Afaguei-lhe os cabelos.
Hoje tomei um café breve olhando o relógio.
Hoje despedi-me com um beijo e saí de casa. Feliz. Acenando para a janela onde ela me olhava e retribuía o aceno.
Hoje acendi um cigarro e outro parado no trânsito. Ouvia música no rádio. Alta.
Hoje cheguei atrasado ao trabalho.
Hoje fui almoçar com um amigo. Um bom e velho amigo. Tivemos uma longa conversa, agradável, daquelas que só dois amigos que se adoram podem ter.
Hoje saí tarde. Trânsito. Música no rádio.
Hoje, tal como ontem, trouxe-a comigo no pensamento durante todo o dia.
Hoje passei no supermercado antes de regressar a casa. Desejoso de regressar a casa. Desejoso de a abraçar.
Hoje cheguei a casa. Cansado, mas feliz.
Hoje disse-lhe que a amava.
Hoje segurei-lhe o rosto. Olhei-a nos olhos e disse-lhe o quanto a amava.
Hoje jantámos.
Hoje fiquei acordado enquanto o Mundo dormia.
Hoje fumei um cigarro olhando a Lua.
Hoje chorei no silêncio da noite.
Hoje escrevi sobre hoje.
Hoje que não chegará a ser amanhã.

Escrito por: James Starfield

A caixa que mudou o Mundo

“A caixa que mudou o Mundo”. Creio que assim foi designada a Televisão. Se não foi, peço desculpa pelo erro. Que não será grave se considerarmos que não se limitou a mudá-lo mas também, e cada vez mais, a moldá-lo.

Sempre gostei de televisão e ainda gosto. Sou um consumidor deste produto no qual ainda reconheço virtudes e potencialidades. E porque sou um lírico sempre achei que este magnífico meio de comunicação tinha o grato dever e a responsabilidade de cumprir com uma tríade essencial: Informar; Educar e Entreter. E qualquer uma delas, com qualidade. Com a qualidade e respeito que merecem as pessoas que pagam impostos para lhe aceder.

Mas afinal, também se descobriu que é um magnífico meio de moldar, influenciar, desinformar e entreter. Entreter é importante. Quanto mais entretenimento melhor e de preferência, o mais estupidificante possível. Um pouco à laia da máxima romana “Pão e Circo”. E quanto menos pão, mais circo para que se esqueça a fome. Reforce-se o número de palhaços, acrobatas, malabaristas e ilusionistas.

Ah, claro!, não esquecer os gladiadores e as sangrentas batalhas que punham ao rubro a multidão, quanto mais rubro fosse o espectáculo e mais rubra ficasse a areia da arena. Mas nós já não estamos no império romano. Estamos no século XXI. Somos diferentes.

- Somos diferentes? - Pergunto
- Não sei – Respondo

Olhando para os noticiários interrogo-me. Após o rol de desgraças: assaltos, falências, desfalques, crise (de preferência acompanhados de um rio de sangue), é dado tempo de antena a notícias assaz importantes para a nossa vidinha: as operações plásticas dos “famosos” (que nem sei porque o são, nem qual o seu contributo para a sociedade, digno de registo); os escândalos da coroa britânica; e futebol.

E, correndo o risco de imitar os telejornais, destaco o futebol! Também aqui lhe dou o tempo de antena que não se gasta com as referências positivas, passadas quase em rodapé. Podia ficar aqui a enunciar um rol infindável, mas depois não tinha oportunidade d escrever acerca da nova namorada do Cristiano Ronaldo e a questionar-me se trocou de roupa interior. E se a Lucy afinal namora com ele ou não. E dos milhares de euros que os jogadores ganham, face aos míseros tostões amealhados numa vida, contados para pagar as contas. Marx esqueceu-se de acrescentar o futebol à sua lista de opiáceos.

Bom, estou a ser injusto. Também se fala dos pobrezinhos. Aliás, devassa-se a história dos pobrezinhos. Estava a ser injusto. A quantidade de vezes que limpei as lágrimas com as Tardes de uma e com a Praça de outros, a assistir à vida dos coitados que se não fosse a benévola televisão ainda estavam na rua da amargura.

Tudo assente numa lógica de audiência, medida em “share”, “rattings” e outras designações semelhantes que se traduzem apenas em: dinheiro e poder. Como na Roma Imperial.

Na Bela Vista, aconteceu o mesmo. Gladiadores, sangue. Circo. Circo em directo, acompanhado por jornalistas que corriam esgazeados avenida acima, avenida abaixo, sempre seguidos por ofegantes operadores de câmera que já reviravam os olhos de saturação. Tudo por um furo. Tudo por mais um apontamento que nem digno de registo seria, mas nunca se sabe.

Pessoas que com eles mantêm uma relação de Amor/Ódio. Querem-nos lá e querem-nos fora de lá. Como um abutre que até dá jeito para comer as carcaças dos animais mortos, mas por quem não sentimos simpatia e afugentamos depois.
Mas apesar de tudo, são o seu passaporte para uns segundos de notoriedade, porque apareceram a espreitar na caixa. É o quid pro quo que se estabelece. Dou-te essa hipótese e tu dás-me um “furo” e uma entrevista.

E custou-me ver jornalistas em directo. Ao vivo e a cores. Custou-me porque em tempos quis ser um deles. E agora, aquela imagem, ali, afigurou-se-me patética. Desproporcionada. E mais desiludido fiquei quando li, e vi as reportagens. E mais desiludido fiquei por o único jornalista que se deslocou ao bairro azul durante a acção de limpeza que estava a decorrer, envolvendo crianças, moradores, não tivesse tido a mínima curiosidade jornalística de tentar perceber o que era.

Isso sim, seria um “furo”. Paredes meias com o aparato, a referência positiva num bairro sobre a luz da ribalta. Mas não interessava. Não estava sobre a luz das labaredas dos contentores e carros incendiados e dos cocktails Molotov. Talvez se devesse ter incendiado o lixo...

Afinal, os “bons da fita” não têm destaque. E o “furo” jornalístico na caixa que mudou o Mundo apenas serve para nos direccionar o olhar para onde convém. Mas não passa de um “furo na caixa”, que não chega a ser uma janela sobre o horizonte.

Mas eu sou um lírico. Apaixonado pela máquina de escrever, pelo cigarro ao canto da boca enquanto transcrevia do bloco as notas de estenografia. O cartão onde se podia ler “Press”. Quis ser jornalista, quando era pequeno. Acreditava que sê-lo implicava ter em si a curiosidade do Mundo e de tudo fazer para a satisfazer de forma isenta e empenhada. Uma espécie de paladino que de tudo faria para apurar factos e trazê-los, tal e qual eram. Talvez ainda aconteça. E lamento que muitos jornalistas, tão líricos quanto eu, se sintam frustrados por não o poderem ser. Obrigados a ser gladiadores, sujeitos ao Circo Mediático. A esses, fica o meu pesar.

E porque se fala em caixa, recorda-me uma outra, que ao ser aberta libertou todos os males no Mundo. No fundo permaneceu apenas a Esperança.

Texto escrito por LB, publicado em http://pachadrom.blogspot.com

Salamalek - Alek-Salam

Ultimamente tenho-me confrontado com algumas considerações entre margens. Norte... Sul...

Ora, achei que estava na hora de expressar algumas considerações que tenho vindo a compilar mentalmente.

Primeiro, temos um dirigente desportivo a declarar que a sul do Douro é Marrocos.
Depois, vem um ministro dizer que a sul do Tejo é um deserto.

Ora, aqui ficam duas declarações em tudo similares, sabiamente proferidas por quem se situa na margem norte de um rio e que, convenientemente, coloca à margem os que estão na outra, na do sul. Mais ou menos como os países do Norte e os países do Sul.
Eu, que toda a vida, nascido, criado e residente na Margem Sul, fiquei feliz que alguém, bem mais iluminado que eu, me elucidasse acerca das minhas origens. Fiquei feliz por descobrir que, era um Tuareg ou um Beduíno ou um Mouro. As dunas, as tendas e as caravanas com que sempre convivi adquiriram para mim um significado diferente. E afinal, Al-Madan é um nome árabe. Tudo fez sentido na minha vida!
Percebi, finalmente, porque os meus colegas de faculdade, residentes na margem norte do Tejo, tinham tanto medo de atravessar a ponte. Um deles, que até era oriundo do Fundão, mas que vivendo em Odivelas, chegou a insinuar que Almada e Seixal eram hortas! Pacientemente, tive de lhe explicar que na minha terra só nasciam cactos.
E por estas e por outras, ou por eles não terem galochas, lá ía eu para a margem norte fazer os trabalhos de grupo que nos eram exigidos e deslumbrar-me com a civilização da Amadora, Odivelas e Damaia.

Tempos mais tarde, trabalhei em Oeiras. Um ano e meio. No meu último dia de trabalho, fizemos um jantar de despedida. "Tu decides onde jantamos" - disseram-me. Ora, se durante um ano e meio tinha ido para a margem norte, ousei convidá-los por uma vez na vida, deslocarem-se à Margem Sul, mais concretamente, ao Seixal. Pânico!!!
"Ai, ai, Seixal?" "Onde é isso?" "O que levo vestido" "Como se vai para lá?"

Pacientemente, desenhei um croqui, acalmei os ânimos mais exaltados, expliquei que a roupa tinha de ser caqui e que não se preocupassem, que os habitantes da minha terra os tratariam por "bwana" e seriam amistosos. Enfim, como bom mouro que sou, enchi-me de "salamaleques" e lá os convenci para a experiência de uma vida que, afinal, nem foi assim tão má.

E pronto, durante anos pensei: Esta malta da margem norte é louca. Nós da margem sul não temos estas pancadas. E referia estes episódios em Setúbal, numa busca de compreensão e solidariedade sulista quando, subitamente, me dizem "Alto lá! Que nós somos da margem Norte!". Estarreci! Depois compreendi o porquê.

Efectivamente, porque diabo há-de um sadino considerar-se da margem sul, quando está plantado na margem norte do Sado? Têm toda a razão! Compreendi e concordei. Até aí, tudo bem.

Porém, em seguida vieram as semelhanças com as posições do norte do Tejo. "Vocês da Margem Sul são um deserto" "Vocês da Margem Sul isto, vocês da Margem Sul, aquilo"
Outra semelhança. Tirem um habitante do norte do Tejo ou do norte do Sado do seu círculo geográfico e... Pânico!

Digam a um deles, por exemplo, para ir a Paio Pires ou a Almada ou a Cacilhas.
Ou a um sadino para passar o "passadiço" que cruza o Tejo. E aí está uma Odisseia digna de Homero.

Obviamente censuro nenhum deles. Afinal não são um povo nómada como nós, perpetuamente de tenda às costas, em aventuras no dorso de um camelo. E que só conhecemos outros locais, porque temos de procurar a civilização ou os oásis, como lhes chamamos, para encontrar aquilo que não temos no meio do areal e das tempestades de areia.

No entanto, comecei a achar que afinal não somos o deserto, mas uma ilha entre margens e à margem não sei bem do quê. Não sei, porque nunca tive necessidade de me afirmar como sendo desta ou daquela margem. Gosto da minha margem, mas também sei apreciar as outras. Aliás, trabalhei em todas. Tenho amigos em todas. Nunca me deu para uma guerra da Secessão. Mas parece-me que estou no meio de uma. Se assim for, digam-me, que vou polir a cimitarra.

"Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem" (Brecht)

Escrito por: Lourenço da Arábia