Um desejo de Voar

Os carros passavam, pequenos e velozes, como formigas que se dirigem atarefadas para o formigueiro, percorrendo trilhos de asfalto.

As copas das árvores assemelhavam-se a frondosos manjericos, como aqueles que perfumam as festas dos Santos Populares, mesclando-se com o odor das sardinhas assadas e com o alarido das alegres multidões que dançam ao som da música de baile.
As roupas nos estendais eram bandeiras multicolores sacudidas pelo vento, e os estendais, um emaranhado de teias de aço.

Dali conseguia perceber os rios como finas veias azuis que serpenteavam entre margens, levando a vida correndo dentro de si.

Só o mar permanecia imenso. O mar é imenso, independentemente do ângulo que escolhemos para o olhar. Imenso e eterno. O mar é o imenso e eterno espelho do céu.
Dali, tudo lhe parecia mais belo. Distante e belo. Como se a beleza só pudesse ser percebida a partir daquele ponto de vista. (Engraçado! Estando no meio das coisas, muitas vezes, não nos apercebemos delas).

À sua frente, as janelas deixavam transparecer vidas que decorriam alheias. Quem seriam aquelas pessoas? Que estariam a fazer? Seriam felizes?
Esboçou um sorriso e esperou que assim fosse. Não os conhecia, mas desejava-lhes a Felicidade. E quis dizer-lhes quão belo era o Mundo.

A uma das janelas assomou-se uma criança e acenou-lhe. Respondeu ao aceno com um olhar de ternura. Por instantes, o olhar de um ficou preso no do outro. E ambos sorriram. Um sorriso de alegria, respondido com um sorriso de nostalgia. Disse Adeus à criança que um dia fora. Quando passava as tardes soalheiras de Verão a brincar na rua a engendrar estratégias de ataque contra as investidas dos índios que atacavam a caravana. Ou a fazer bolinhos de lama, servidos com um chá imaginário, no imaginário que era a casinha. Também podia ser a tentar acertar com os berlindes nas três covinhas escavadas com o calcanhar girando sobre si mesmo. Ou, ainda, a empurrar carrinhos entre pistas alisadas na terra. Ou a saltar ao elástico, ao ritmo das cantilenas, por vezes sem sentido, que não o sentido de aproveitar as tardes soalheiras.

Mas agora sentia apenas um profundo desejo de voar, de elevar-se para lá das nuvens, para lá do Mundo. Abriu os braços e abraçou-o num breve instante.

Escrito por: Sphynx

3 comentários:

  1. Gostei muito do escrito. Gostei ainda mais do não escrito.

    Detenho-me numa frase, escrita entre parêntesis:

    (Engraçado! Estando no meio das coisas, muitas vezes, não nos apercebemos delas).

    Este perspectivar de fora permite-nos apenas vislumbrar outro lado da realidade. Estar no meio das coisas não é senão outra forma de a ver. viver.

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  2. Concordo plenamente consigo.

    É mesmo uma questão de perspectiva. Quer de fora, planando. Quer de dentro. Em ambos os casos é viver.

    Às vezes é necessário planar, sair, para melhor ver. Como afastar-se de um quadro para melhor o contemplar e ver o seu todo. Aproximar-se para analisar as pinceladas de tinta.

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  3. Sim, é verdade. Sai-se para ganhar perspectiva, não é assim que se diz?

    Mas depois também se diz que o todo é maior que as partes.

    Complexa, a realidade. No fundo, nunca a chegamos a ver.

    Ou como se escreve aqui, a realidade não será mais que relances dos mundo, quando abrimos os braços no desejo de voar...

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