Reflexão

Diz-me.

Alguma vez te puseste a pensar, num determinado momento, como ali chegaste? Àquele preciso instante?

Eu explico.

Imagina-te a conversar com alguém que acabaste de conhecer. Ou dando por ti num local que, até então, era para ti um cenário inimaginável. Ou, simplesmente, a tomar um café.

Nesse momento, pára!

Pára e pensa toda a toda a tua vida até esse instante. Em todo o teu percurso, escolhas, decisões, acasos ou não. Como se toda a tua vida confluísse para esse exacto momento, até àquela fracção de segundo que te fez suspender o tempo e o espaço. Como se tivesse sido esse o propósito de teres perdido aquele autocarro longínquo. Daquele ano escolar que repetiste. De teres decidido faltar àquela aula para estar com os amigos. Daquela festa a que decidiste ir ou faltar. Daquele telefonema que atendeste. Daquela zanga que tiveste. Dos serões que passaste. De um beijo perdido algures. Enfim...

Recordas todas as acções que fizeste ou que deixaste por fazer. O que disseste e o que deixaste por dizer.

Subitamente, dás contigo imerso em pensamentos, a recuar a tantos momentos e a procurar, em cada um deles, o sentido da tua vida.

Pessoas que conheceste pelo caminho. Umas, tornaram-se amigos. Outras desejavas nem as ter conhecido. Outras, ainda, nem sequer te deixaram a memória das feições ou do nome, mas algum papel também devem ter desempenhado na tua vida, para que agora as recordes.

E o teu semblante carrega-se. E o teu semblante alivia-se num sorriso. E o teu olhar torna-se líquido na emoção da alegria e da tristeza, recordando-te a dualidade.

Tudo aquilo que foste e que és e que te conduziu àquele momento inicial.

Talvez o lamentes ou não. Talvez te carregue o semblante, ou não.

Na Sala do Fundo II

Acordou muito tempo antes do Tirano do Tempo lhe vir recordar que era tempo de levantar-se.

O Tempo, sempre o Tempo…

(O Tempo contra o qual corremos. O Tempo, que nos esforçamos por acompanhar numa corrida louca, contra o tempo. Maratonista incansável ao lado do qual corremos até ao dia em que não conseguimos mais, em que a falta de fôlego nos vence ou quando, simplesmente, decidimos abandonar a corrida a meio. Mas ele, o Tempo, não pára, não espera. E corre, corre até ao Infinito.)

Há algumas horas que lutava contra o tempo. Fitava o tecto do quarto sem conseguir dormir. Virava-se na cama, de um lado para o outro, procurando posição, mas o sono, esse, tinha-lhe fugido, deixando a porta aberta para os sonhos acordados.

(Sonhos, se sonhos lhes quisermos chamar porque outro nome menos agradável poderão ter, que nos invadem a mente sem serem convidados. Que nos obrigam a deambular pelo Universo Onírico, surreal, mas não necessariamente falso. Distorções do real, sim, mas que derivam da realidade. Talvez por isso, nos incomodem tanto, por essa, ainda que infíma relação com o real, com a origem dessa abstracção.)

A casa estava silenciosa.

Contudo, havia um murmúrio constante e uma voz que lhe falava. Uma voz permanente que lhe falava naquele quarto vazio, naquela casa vazia, naquele espaço vazio, onde ecoavam as palavras.

(Palavras que escutamos à nossa volta e dentro de nós. Palavras nem sempre num tom suave e aprazível. Palavras que compõem frases terminadas em exclamações, interrrogações e afirmações, que nos espantam, interrogam e constatam. Tal como os sonhos, nem sempre correspondem ao real. Mas partem dele. Podem distorcê-lo, para nosso alívio ou infortúnio.)

Virou-se novamente na cama.

Sacudiu a cabeça, procurando evitar a voz. Pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos que teimavam em escutar.

Na janela aberta, bailava a cortina. Bandeira desfraldada, ao sabor da corrente de ar fresco que lhe invadia o quarto. Bandeira de uma nação desolada, de um país imaginário, de uma terra longínqua, de navio pirata, de tréguas, de um qualquer país de conto de fadas, idílico. Um qualquer refúgio longínquo, onde nunca sequer se esteve.

Lenço acenado.

Fantasma ululante.

Ou, simplesmente, uma cortina. Esvoaçando ao sabor do vento.

No agitar dos pensamentos que lhe sacudiam a mente, contorcia-se num estado febril, acentuado pelo cansaço.

Novamente, os olhos fixos no tecto rendem-se à insónia.

Levantou-se e dirigiu-se à porta do quarto. Fechada.

Rodou a maçaneta. Continuou fechada.

Sacudiu a porta e a porta permaneceu fechada.

Espanto e estupefacção, conduziram o olhar em redor. A uma observação atenta que não tinha feito antes. Aquele quarto, não era o seu quarto de dormir. Não percebeu como ali tinha ido parar, nem como não reparara na diferença. Dir-se-ia que ali se tinha deslocado num qualquer estado de sonambulismo. Num momento de inconsciência que não tinha percepcionado?

Definitivamente, não estava no seu quarto! Reconhecia agora aquele espaço: câmara recôndita e obscura que tanto temia, onde evitava entrar, de onde temia não sair.

As paredes fechavam-se sobre si. Faltava-lhe o ar. Sentia a cabeça rodopiar e uma sensação de náusea crescia dentro de si.

A voz tornava-se cada vez mais elevada, mais difícil de afastar, como se fosse um arauto maldito.

“Não, não é verdade!”.

A voz murmurava-lhe.

“Não quero saber!”.

A porta que não abria.

A voz dizia-lhe.

“Sai daqui! Deixa-me, sai daqui!”.

A voz alertava.

“Pára!”.

As paredes curvavam-se.

“Basta!”

A porta fechada.

Deixou-se cair de joelhos e curvou-se sobre si. Mãos pressionadas contra os ouvidos. A porta fechada, apenas aberta para os pesadelos acordados. Um grito. As paredes fechavam-se e abatiam-se sobre si. A voz.