Na sala do fundo

Estavam reunidos na sala do fundo. Naquela noite, como em muitas outras, conversavam ao sabor de um café, envoltos pela névoa que se desprendia dos cigarros e que, lentamente, se esfumavam em conversas banais que acabavam por nunca o ser. Revestidas de duplos sentidos e interpretações subtis. Avaliavam cada palavra, cada gesto, cada silêncio, cada olhar. Os temas eram variados, mas nunca totalmente inocentes.

Eu tinha oito anos. Uma criança curiosa. Interrogava-me sobre o porquê das coisas. Buscava a causa das coisas, visíveis e invisíveis. Aquelas que se dizem existir, mas que nunca ninguém vê ou sabe explicar. Que muitas vezes nos chegam como “Ouvi dizer” ou “fulano contou-me que”.

Esse carácter oculto e misterioso do que não vemos ou nos é vedado, sobretudo quando não temos uma década de existência e centenas de perguntas, era suficiente para aumentar o fascínio e fazer-me tomar atenção. Atentar às conversas encriptadas dos adultos, num esforço de tornar imperceptível o significado do seu discurso. Aprendi a desconfiar.

Ouviam-se vozes, vindas da sala do fundo. A noite estava amena. Da janela do meu quarto via o céu e as estrelas tremeluzentes. Um pontilhado argênteo que eu unia para construir múltiplos desenhos. Não conseguia dormir. A minha atenção estava no som das vozes.

Levantei-me. Peguei no urso de peluche e saí do quarto.

Ao fundo do corredor, a porta entreaberta rasgava a escuridão com uma linha de luz. Encaminhei-me para aquele farol, apertando a mão do meu companheiro naquela incursão nocturna. Clandestina.

Caminhei com as pernas trémulas, movidas pelo ímpeto da curiosa vontade, em passos hesitantes. Querer escutar e temer ouvir. Às vezes os adultos ocupavam o tempo com conversas medonhas. Também me interrogava porque o faziam.

Estes serões tinham-me sido interditos, porque em alguns momentos, em que se falava de bandidos ou outras coisas ruins (como lhe chamava), ficava com medo do escuro e com medo de ir para a cama. E nessas alturas, avançava de interruptor em interruptor, até chegar à minha fortaleza. Debaixo dos lençóis estava a salvo. Com a cabeça tapada ninguém me via e assim a minha presença era despercebida.
Continuei a avançar. O corredor tornara-se mais longo e o tapete que o percorria tinha adquirido o dobro do comprimento.

As vozes tornavam-se mais nítidas.

Finalmente. Quem olhasse agora, do extremo oposto, veria uma linha de luz entrecortada por um vulto que a interrompia. Ajoelhado, com o urso de peluche unidos num abraço, espreitando.

Conversavam na sala do fundo, ao sabor de um café, envoltos na névoa que se desprendia dos cigarros, sentados nas velhas poltronas encovadas, marcadas por muitos outros serões.

“-Vou contar-te uma história de fantasmas!” – disparou à queima-roupa, aproveitando um breve momento de silêncio.

A resposta veio sob a forma de um breve anuir de cabeça, acompanhado por um sorriso nervoso. Arrisquei a adivinhar-lhe um agitar dentro do peito, evidenciado pela forma como se ajeitou na poltrona. Como se estivesse a amarrar-se ao mastro do navio antes da tormenta que parecia intuir.

Eu também me preparei para a força do desconhecido. Para o salto no vazio. Apertei mais o meu urso de peluche contra o peito. Creio que quase o sufoquei. Procurei nele a força necessária e disse para comigo: “Os fantasmas não existem”.
“Os fantasmas não existem” – pensou, procurando convencer-se daquela verdade e procurou convencer-se naquela afirmação.

Iniciou a narrativa fantasmagórica. Um, após outro foram invocados espíritos. Acordados do limbo em que se encontravam e trazidos à sua presença.
O ar tornava-se menos respirável. Tenso.

Senti um arrepio que me percorreu o corpo e me provocou um estremecer desconfortável. Pareceu-me ver o fumo dos cigarros tomar forma. Ou era uma forma que se materializava entre o fumo, sendo ela própria uma neblina densa. E pareceu-me ver emergir das paredes, erguendo-se do chão, descendo do tecto espectros que pairavam sobre as suas cabeças, entre eles. E não conseguia desviar o olhar, nem conter a estupefacção.

Eram demónios vindos do Inferno?

Um deles virou-se para mim. Olhou-me com as órbitas vazias e negras. Lançou um grito. E eu franzi os olhos com força e comprimi as palmas das mãos contra os ouvidos. Era ensurdecedor. Ainda que inaudível.

Parou. Silêncio. Abri os olhos. Tinha desaparecido ou pelo menos eu não o via. Mas logo veio outro.

Um, após outro foram invocados. Um, após outro, repelidos. Procurávamos repeli-los. Tanto quanto nos permitiam as forças.
Tal como náufragos que se debatem com as ondas sucessivas que, impiedosas, os assolam uma, após outra, esgotando as forças. Exaustos, acabam por sucumbir. Tragados pela inevitabilidade, são arrastados para o abismo.

O olhar vago. Rendido.

Penderam-lhe os braços, nos braços da poltrona. Olhou na direcção da porta e os seus olhos encontraram os meus. Não disse nada. Limitou-se a olhar-me e ambos nos reconhecemos naquele momento. Éramos um. À porta. Na sala do fundo.

A sua alma tinha sido possuída mas não exorcizada. Como quando se planta uma semente ruim que se deixa germinar e transformar numa planta venenosa.

A partir daquela noite nunca mais fui à sala do fundo.

Parte de si ainda lá está.

Escrito por: Sphynx

4 comentários:

  1. Interpreto esta Sala do Fundo como um lugar a evitar. Do qual fugimos. Porque não queremos ver (onde é que eu já li isto?).

    Eu prefiro olhar para a Sala do Fundo como o baú onde temos as coisas complexas. As que existem dentro de nós e que pedem reflexão. Sala onde vamos amiúde, buscar aquela coisa que já nem lembrávamos que existia ou que ainda não tinhamos tido tempo para brincar com ela.

    A Sala do Fundo é um lugar de emoções fortes. Boas e más.

    Na Sala do Fundo coexistem demónios e ursos de peluche.

    (Lembrei-me de uma música dos Ornatos Violeta. Sobre monstros. Tenho de perguntar à Catizzz onde anda a música.)

    Mais um grande exercício de escrita. Gostei.

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  2. Existem diversas salas do fundo.
    Esta sala do fundo não é necesariamente aquela de onde fugimos. Mas talvez aquela onde desejaríamos nunca ter entrado. Mas onde, por vezes temos de entrar, ainda que não o queiramos. E uma parte de nós permanece aprisionada no seu interior.
    Existem outras, onde parte de nós também fica. Mas porque lá desejamos permanecer. E onde vamos amiúde, mas por razões diferentes.
    Concordo, quando define sala do fundo como um lugar de emoções onde convivem ursos de peluche e demónios.
    Obrigado pelo seu comentário.

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  3. De nada!

    Sempre às ordes!

    Já agora, o que é Sphynx? E de que género humano?

    :P

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  4. Esclareço que a "música dos monstros" é na verdade o título do último (infelizmente) álbum dos Ornatos: O Monstro precisa de amigos. Quem não precisa?!

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