Tenho oitenta anos. Estou velho.
Por vezes acho que perfiz esta idade há muitos anos atrás. Como se tivesse tido apenas duas idades: criança e velho. Mas não é sobre isso que aqui irei escrever. (Perdoem estes desvarios).
Escrevo e enquanto o faço, fito as minhas mãos. Mãos com que ainda agarro languidamente a vida. Vida que teima em escapar-se por entre os dedos, semelhantes a raízes retorcidas. Âncoras carcomidas, fundeadas num porto antigo.
Olho a folha de papel. Ah! Olhos cansados que adormecem cada vez mais cedo! Pálpebras que se assemelham a cobertores pesados. Tapando-os. Fechando-os.
O sono da idade cai sobre mim.
Tenho o rosto sulcado pelas linhas do tempo. Linhas que cosem memórias de um tempo em que não as tinha. Linhas que me prendem a um tempo que já não tenho.
Memórias e recordações. Algumas irremediavelmente perdidas. Outras inesquecíveis. Alegrias e tristezas convivendo lado a lado formando um misto paradoxal de querer recordar e esquecer, de reviver e de nunca o ter vivido.
Uma vez mais, peço perdão pela facilidade com que me afasto para lá do objectivo inicial, do propósito, trocando-o por divagações entorpecidas, despertas nestas palavras.
Escrevo para responder a uma questão. Uma pergunta tão simples, formulada há quarenta e cinco anos atrás.
Certa noite, quando me que me preparava para dormir, foi-me colocado um desafio: “que momento comigo recordarás aos oitenta anos”?
Uma simples pergunta. E tive de esperar quarenta e cinco anos para lhe responder. Quarenta e cinco anos e muitos momentos. Mais que o único que me foi pedido.
Elejo dois: Um. Final de tarde na praia. O poncho de lã colorida. Sentados na areia. O vento frio. A procura do calor dum corpo no outro corpo num abraço apertado. Amanhecia naquele entardecer.
Dois. Negro e Vermelho. Uma dança. Um leque sustentando a sedução num olhar. Rendição e excitação noutro. Olhos fatais. Mãos fatais. Mãos esvoaçando como pombas. Uma actuação no palco da Paixão.
Oitenta anos e sento-me entre torvelinhos de areia, com a cabeça baixa e fecho os olhos para a evitar. Fecho os olhos e vejo.
Oitenta anos e sou espectador. Abro os olhos e fico suspenso naquele rodopiar. O olhar fatal. Esquerdo. Direito. Remate.
Olé! ;)
ResponderEliminarEngraçado como, no fim das contas, o que lembramos com mais intensidade são pormenores. E serão eles também que nos apaixonam ou nos desencantam. Há quem diga que é num breve gesto ou num olhar que conseguimos vislumbrar a alma de alguém...
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