“O Amor é o apaziguar de uma dor constante”

Saí de casa e conduzi-me para a margem do Tejo. Sob os auspícios da Lua, caminhei pela rua escura acompanhado pelo marulhar das ondas, que vinham desfazer-se contra o paredão, acentuando o tom lúgubre daquele local parcamente iluminado pela tonalidade amarelenta dos candeeiros. Na margem oposta as luzes da cidade rivalizavam com as estrelas. Caminhei mais um pouco, fumei com o que restava do cigarro e após aquela última e demorada aspiração, entrei no “Lado Negro do Rio”.
Ali a atmosfera pouco contrastava com o exterior, mas agora estava mais sombrio que o habitual: sem música; luzes apagadas... As velhas paredes brancas estavam tingidas pelas roupas negras daqueles que, como eu, íam chegando para ouvir a declamar poesia, acompanhada pela melodia pungete da guitarra portuguesa. Poeta e músico ocuparam os seus lugares no centro da sala, rodeados por uma assembleia ávida. Eu sentei-me naquela Ágora improvisada e aguardei.
Silêncio. Ouvem-se os primeiros acordes.
“O Amor é o apaziguar de uma dor constante” – gritou subitamente a alma do poeta o verso arrancado à folha que segurava entre os dedos. Num gesto longo, dirigiu-a à pequena chama da vela e incendiou-a. Um clarão intenso revelou o olhar dolente com que a fixava. Despediu-se do pequeno pedaço de papel, largando-o em direcção ao solo, onde se consumiu num numa labareda efémera. Fogo-fátuo que se extinguiu num amontoado de cinza, devolvendo à sala a penumbra entrecortada por espectros que assistiam silenciosos. E o poeta continuou a declamar, acompanhado pelo tanger da guitarra que lhe amparava as palavras.
Imerso naquele momento cénico, procurei interpretar a metáfora ali representada.
Delicada, a chama da vela e ténue a sua luz. A escuridão à distância de um sopro. Frágil, mas suficientemente forte para nos captar o olhar, para inflamar palavras e incendiar quem lhe tocar. Farol entre trevas. Rasgão na cortina de noite. Suficientemente intensa para apaziguar uma dor constante.

Nota: A frase que dá título a esta história é retirada de um poema de António Boieiro. Assisti a esta actuação no bar "O Lado Negro do Rio". A declamação de poesia foi acompanhada à guitarra portuguesa por Lima

Escrito por: Nephilim

3 comentários:

  1. Será o amor o apaziguar de uma dor constante? Ou ele em si mesmo uma dor? Ainda que uma dor que todos desejemos.
    Já Camões o dizia:

    Amor é fogo que arde sem se ver,
    é ferida que dói, e não se sente;
    é um contentamento descontente,
    é dor que desatina sem doer.

    É um não querer mais que bem querer;
    é um andar solitário entre a gente;
    é nunca contentar-se de contente;
    é um cuidar que ganha em se perder.

    É querer estar preso por vontade;
    é servir a quem vence, o vencedor;
    é ter com quem nos mata, lealdade.

    Mas como causar pode seu favor
    nos corações humanos amizade,
    se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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  2. António Boieiro reencarnou nesta vida a 1 de Fevereiro de 1970 num ponto do Universo conhecido por Almada.
    Dedica-se à luta poética desde sempre e para sempre, tendo travado duras "batalhas" que ficaram conhecidas nas mentes das gentes por: "O Incesto", "Poetry of Shadows" e "Presságio", estas cantadas. Outras como, "Que o acordar seja o anoitecer", "Sem cravo na lapela" e "Doce Cicuta", através da declamação teatralizada.
    Outras ainda foram travadas nas folhas de papel e dão pelos nomes de: Suave Negro Hábito, Contos da Lua Nova, Uma Dúzia de Páginas de Poesia (Caderno n.º 8 da colecção Index Poesis) e Esta Doença que é Escrever.
    Na frente do combate poético dinamizou várias sessões de declamação de poesia "vadia" e de "incentivo".
    Actualmente meteu na cabeça que tem de travar uma batalha épica chamada 1.º Encontro de Poetas Almadenses.

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  3. A malta dó'pé do passadiço não pára de me surpreender...

    http://intempusmusic.blogspot.com/2008/01/os-msicos-antnio-boieiro.html

    http://intempusmusic.blogspot.com/2008/01/os-msicos-pedro-antunes.html

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