O Equilibrista




Todos os anos chegavam à cidade numa caravana. Estacionavam no mesmo terreno baldio as roulottes velhas e erguiam a enorme tenda às riscas amarelas e azuis, quebradas por remendos que cobriam cicatrizes antigas - memórias de outros tempos, de outras paragens, de outros espectáculos realizados a coberto daquelas paredes de lona.

No exterior, os leões, os tigres, os póneis e os elefantes, faziam as delícias dos mais pequenos que acorriam ao local, precipitando-se para a frente das jaulas com o fascínio a brilhar-lhes nos olhos.

Pelas ruas eram afixados cartazes coloridos com rostos de palhaço, imagens de tigres a saltar para círculos de fogo. Apelos à presença e promessas de divertimento e emoções fortes, num espectáculo nunca antes visto.

Nessa noite, após as gargalhadas arrancadas pelos palhaços e o espanto e incredibilidade provocados pelo mágico, chegava a vez do equilibrista.

No centro da arena, um homem gordo com um casaco de abas de grilo, cartola numa mão e microfone na outra. Dirigiu-se aos “Meninos e meninas. Senhoras e senhores. Respeitável público”, anunciando o próximo número.

Chamava a atenção para a altitude.

(Todos os olhares se concentravam agora no tecto da tenda)

Chamava a atenção para a longitude.

(Todos os olhares percorreram o arame, unindo os dois pontos que o mantinham retesado e suspenso no ar)

O homem gordo anunciou o equilibrista e este surgiu ao público, no meio de um círculo de luz.

Entrou em passos de corrida e com um sorriso no rosto, estacando num gesto ensaiado, como que a dizer, “Aqui estou!” Fez uma vénia breve a agradecer os aplausos entusiastas e deu mais uns passinhos de corrida, sempre acompanhado pelo halo luminoso que o acompanhava enquanto subia, degrau a degrau, na direcção da plataforma. Aí, aguardava-o uma assistente com uma vara longa e uma venda para os olhos.

Ao chegar ao topo, olhou para baixo, para as cabecinhas minúsculas e mãos que se agitavam e retribuindo-lhes com um aceno. Para a equipa de paramédicos que se concentrava numa das entradas. Para uma equipa de assistentes que esticavam uma rede piso de areia, mas que não ergueram.

Ouviu o apresentador chamar a atenção para o facto dele não saber sequer se iria ter rede abaixo de si, suscitando a comoção do público.

Olhou para a frente, para a outra extremidade do arame.

Pegou na vara e fez sinal à assistente para que esta lhe vendasse os olhos.

Olhou para dentro de si.

Naquele momento, abateu-se sobre a tenda um silêncio quebrado apenas por um rufar de tambor que acompanhava cada gesto, cada passo.

Lentamente, conduziu o pé ao arame. Sentiu-o. Tacteou-o e deu o seu primeiro passo na escuridão, como quem salta para o desconhecido. Avançou, e pensou na rede que não sabia se estava lá para lhe amparar uma possível queda. Sabia-a estendida no chão, mas desconhecia-a erguida. Dependia exclusivamente do seu equilíbrio, da sua capacidade de orientar-se no escuro e de uma confiança que depositava cegamente nos assistentes.

A cada ligeiro desequilíbrio, elevavam-se gritos, reacções assustadas que não ouvia, porque o bater do seu coração abafava qualquer outro som. Agarrava mais firmemente a vara, como se agarrasse a vida. Vida suspensa por um fio de aço frio. Tinha medo. Por mais vezes que tivesse repetido aquele exercício, sentia sempre medo. Sentia uma vontade imensa de retirar a venda, mas não o conseguia fazer ali, algures no arame. Só podia seguir em frente ou deixar-se cair. Mas deixar-se cair no vazio sem saber se a rede estava lá?

O suor escorria-lhe pelo rosto. Os músculos, tensos, tremiam-lhe e faziam tremer a linha ténue e incerta, fronteira entre tanta coisa que lhe atravessava a mente, naquela travessia.

Medo. Angústia. Coragem. Desespero. Certeza da incerteza.

“A rede? Onde raio estaria a rede?” – pensou. De que lhe adiantava saber que existia, se desconhecia se estava lá?

Sorriso. Escárnio. Maldizer a sorte.

Paulatinamente, sentia-se invadir por um desprendimento, de quem caminha sem querer saber, num abandono solitário. Tinha de seguir e era isso que iria fazer até onde conseguisse. Dar o seu melhor. Afinal, era isso que o público esperava de si.

E se caísse e a rede o segurasse, tanto melhor.

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