Sentou-se à escrivaninha e abriu o velho alfarrábio. Ritual cumprido com o rigor matemático da inevitabilidade. Uma escribomania incurável.
Páginas manuscritas diariamente, compendiadas em trinta e quatro capítulos completos.
Registos do passado, relatos do presente e antevisões do futuro, agrupavam-se.
Pegou no aparo e esticou o braço na direcção do tinteiro. Inspirou e preparou-se para escrever.
Desta vez os seus gestos eram seguidos de perto. Os seus pensamentos, acompanhados enquanto os registava.
O livro estava aberto.
- Vá, anda, acompanha-me. – disse, convidando à valsa. Em três tempos.
Escreveu no topo da página: "Nem tudo é o que parece. Pode ser mais do que é, para lá da aparência."
Uma exortação expressa num paradoxo, um véu subliminar pousado delicadamente sobre a superfície.
Com gestos fluidos, deixava rastos de tinta sobre a folha de papel que a absorvia letra a letra, palavra a palavra, numa composição anagramática, alegórica.
“O RAMO.
Certo dia, dirigiu-se à margem de um rio que corria impetuoso na direcção de um mar desconhecido. Esta imagem afigurou-se-lhe assustadora mas, simultaneamente e, talvez por isso mesmo, tão atraente e irresistível. Um mistério que pedia para ser desvendado.
Pegou numa canoa e colocou-a à tona da água. Entrou. Sentou-se e pegou nos remos. A canoa agitava-se ao sabor desprendido da ondulação. O coração agitava-se ao sabor das ondas da emoção.
Soltou a amarra que o prendia umbilicalmente à segurança da margem e iniciou o seu percurso.
Rio curioso! Ora agitado. Ora calmo.
Também as suas margens eram belas e horríveis, tristes e alegres.
Rio, mar de sensações. Rio curioso."
Pousou o seu olhar no outro olhar, que agora fixava o seu. Suspensos um no outro, procurando reacções.
- Acompanhas-me? – Procurou
- Sim! Creio que sim – Resposta atirada na brevidade de um sorriso.
Prosseguiu.
“Na turbulência agitada, num momento incauto, a canoa virou.
Caiu na água.
Faltou o pé.
Na corrente que tudo arrasta, com uma fúria louca e imparável, que não se compadece, esbracejou e procurou agarrar-se para escapar aos abismos ignotos que o desconhecido encerra.
Eis que na margem do rio encontrou o ramo.
Agarrou-o com todas as forças.
O ramo, um dos mais importantes da árvore da vida. Tão poderoso. Mas que se parte tão facilmente. Estável e instável. Uma segurança insegura.
Resistindo, tudo suporta. rosa avalom.
Quebrando-se, devolve-nos ao turbilhão, ao arrastar violento. só a morte dói .
Contudo, não deixamos nunca de o procurar, nem de o segurar com toda a firmeza.
Uma dualidade paradoxal.”
Paradoxos. Sempre os paradoxos e a sua desconcertante anulação, na afirmação de si mesmos.
Afirmativos. Contraditórios.
Pousou o aparo. Soprou levemente sobre a tinta, petrificando-a sobre a pálida folha de papel.
O livro continuava aberto.
- Percebeste o que escrevi?
- Acho que sim. Segui a senda das tuas palavras, por caminhos de Luz e de Sombra. Falas em trocadilhos de forças em equilíbrio. É isso?
-Yin e Yang – gracejou – Sim. Mais ou menos isso.
- Interpretar o que está além. Ler para lá das letras.
- Tal e qual. Como quando se compra um perfume. Temos o frasco. Temos o seu cheiro. Mas para lá de ambos, temos a sua essência.
- A visibilidade e a invisibilidade.
Ambos ficaram presos no silêncio.
Mudos
Ocaso do dia que finda no acaso dos dias que seguem.
- (…) - Tentou dizer algo. Mas as palavras fugiam-lhe muitas vezes quando perdiam o suporte escrito.
Talvez porque fosse mais visível na sua invisibilidade e dissesse mais naquilo que não diz.
E novo paradoxo: o dito ou o não dito? Aquilo de que se fala ou aquilo de que se cala?
O não dito.
ResponderEliminarO que se cala.
O que se adivinha.
O que se procura ou que se encontra?
Muitas vezes, procurando não se encontra e noutras, encontra-se não se procurando.
ResponderEliminarUm texto bonito sobre o AMOR. Essa dualidade paradoxal...
ResponderEliminarOnde nos encontramos e nos perdemos.
Poderia ser sobre a VIDA. DIVA. O equilíbrio no trapézio. Só vale a pena ser vivida se for intensamente. Com força! E quanto mais alto é o voo, maior é a queda. Mas quando nos estatelamos cá em baixo, passados os arranhões e nódoas negras mais ou menos profundas, abrimos as asas e weeeeeeeeee...
Mais uma voltinha? :)
Rosa avalom?
ResponderEliminarO que é?
Só a morte dói?
ResponderEliminarÉ pra baralhar letrinhas?
Instruções, precisam-se!
A ROM
ResponderEliminarTambém é sobre a vida.
A vida que corre e que flui. Como um rio.
Já descobri!!!
ResponderEliminarMas falta ali uma letrinha.
Agora, vamos ao resto! :)
Sugus de laranja.Os preferidos.
Gosto de aproximações fonéticas. E de anagramas.
ResponderEliminarChapa má em nós?
;)
Cito Rosa C.:
ResponderEliminar"Ya! A pitosga da tita..."
Errata: (erro de citação)
ResponderEliminar"Yé! A pitosga da tita..."
:)
"Interpretar o que está além. Ler para lá das letras."
ResponderEliminarAlém do que está escrito no(s) dois textos muito bem encadeados e muito bem escritos, encontramos uma história que nos obriga a olhar para lá do espelho das letras. Gostei. Melhor, estou a gostar do exercício. Lembra-me uma altura em que se construíam cumplicidades através de citações da Ladi Di (e esta não estando cifrada, é como se estivesse...).
Siga! Acompanhas-me?
O espelho das letras...
ResponderEliminarO espelho devolve imagens invertidas.